sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Um piano na escuridão

O que mais me comove em música
São estas notas soltas
- pobres notas únicas -
Que do teclado arranca o afinador de pianos.

Mário Quintana

Fazia Solidão.

Leituras inacabadas, poltronas vazias, livros espalhados sobre os balcões, caos displicente de palavras, vozes emudecidas, passos interrompidos, luzes apagadas, fim de jornada.

Em meio ao silêncio, profundo e absoluto, o som tênue, quase imperceptível de uma canção, ressoava distante no tempo e no espaço e preenchia com notas dissolutas de calmaria e êxtase, a escuridão.

Andei por entre as estantes, à procura de um caminho que levasse ao conhecimento da melodia, que não parecia vir de lugar algum e ao mesmo tempo estava em todos os lugares, da melodia que não era de se pegar, era de se sentir, “de estarrecer de todo a gente”, era mistério.

Cheguei a um corredor com duas portas. Uma delas levava à saída da Livraria e ao fim do meu idílio, a outra, ao auditório. Algumas pessoas cruzaram a primeira porta e foram embora. Tinham pressa e não ouviam a música.

Aproximei-me da segunda porta, que estava entreaberta, o ritmo agora era intenso, vibrante, as notas soltas se juntavam a outras e revelavam a origem da canção que eu procurava.

E foi o que não se podia prever.

No palco do auditório sem plateia, sem a luz de holofotes, sem aplausos, ele tocava o piano na escuridão, com a intimidade de um amante e a paixão com que falava de literatura.

A escuridão voltou a cobrir meus olhos, não pela ausência da luz, mas pela presença das lágrimas, diante da beleza daquele instante e do conhecimento de quem era o pianista.

Era o vendedor de poesia. Era um anônimo artista.

Ao final do dia, ele encontrara no auditório, um piano na escuridão. As teclas eram tão conhecidas suas quanto as letras. Permitiu-se tocá-las, senti-las e extrair delas a melodia, que permanece ressoando no tempo, em versos livres, notas soltas, encantamento que nos toma sem explicação.

2 comentários:

Camila Maria disse...

isso me faz pensar que na correria dia-a-dia deixamos passar despercebidos coisas importantes. Que poderíamos parar um pouco e conhecer melhor as pessoas. Texto incrível!

Deniz Adriana disse...

Com palavras tão carinhosas e, sobretudo, generosas só posso agradecer e seguir contando estórias! O conto 'O Vendedor de Poesia', é uma forma de agradecer à tantas pessoas incríveis que enriqueceram minha trajetória, como o povo caloroso de Fortaleza.