sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Chuvas de Novembro

"Eram da garça-branca-grande, 
a exagerada cândida, noiva. 
Apresentavam-se quando nem se pensava nelas, 
não esperadas. 
Por súbito: somente é assim que as garças se suscitam. 
Depois, então, cada vez, a gente gostava delas".

Guimarães Rosa 

Novembro era o mês da cheia no extremo sul da Bahia.

Nesse período, os pastos renovavam-se e uma paisagem verde e florida era vista por toda a extensão de terras. Os rios enchiam-se com novas águas e alargavam-se, tomando forma de mar, levando em correntezas de águas escuras e turbulentas tocos de árvores, folhas secas e tudo o mais que se interpunha em seu caminho.

Apareciam somente nesta época do ano, as piabas bobós, por isso, víamos em diversos pontos do rio, redes de tresmalhos armadas para aprisioná-las por entre as cerdas de náilon.

Quando retiradas da água e expostas à luz do dia, suas escamas prateadas provocavam um bonito espetáculo aos olhos dos pescadores.

A diversidade e quantidade de peixes nos rios, córregos e lagoas, atraíam uma ilustre visitante, uma figura quase mítica na região, a garça-branca que, em sua plumagem alva, paradoxalmente, coloria o pasto verdejante.

Num passado distante, fora essa ave quem inspirara os primeiros habitantes a darem o nome de Guaratinga à região, nome que em tupi-guarani, significava garça-branca.

A lagoa de vegetação abundante que ficava a alguns metros de casa, estava povoada por um grande número delas. Da varanda, ficávamos minutos sem fim observando o mágico bater de suas asas, a graça e astúcia com que sorrateiramente desciam sobre a água e, num rápido movimento, aprisionavam um peixe por entre o bico, voavam até a margem e o devoram em instantes.

Meu pai dizia que um dia chamaria um cinegrafista para aprisionar em imagem aquele revoar, desse modo, poderíamos vê-las e admirá-las não apenas em novembro, mas durante o ano inteiro.

Também chegavam lontras, capivaras e jacarés. As lontras emergiam num ponto do rio para submergirem logo adiante, como a brincar conosco de pique-esconde. Já as capivaras, ariscas e desconfiadas, ao menor sinal nosso, embrenhavam-se no mato alto, deixando para trás um odor forte e característico. Os jacarés, por sua vez, faziam breves aparições e voltavam a se camuflar sob a lama da lagoa.

Novembro era o mês em que a natureza expressava sua força e fazia tudo reviver. Era o mês da vida, para a terra, para as plantas, para os bichos e para os homens.

A fazenda Flor da Barra dividia-se em duas partes: uma parte era de montes e colinas, a outra, de pastos e plantações que, nesta época, ficava sob as águas. Por isso, era preciso resgatar os animais que não conseguiram cruzar o rio e chegar à parte alta antes da enchente.

Entre os animais que ficaram ilhados, estavam uma égua e seu potrinho recém-nascido, que eram o tesouro da fazenda, tanto por serem de raça, quanto por serem animais jovens, fortes e a promessa de uma longa prole.

Meu irmão Ronaldo e meu primo Aurélio, ambos exímios nadadores, ofereceram-se para nadar até o outro lado do rio e trazê-los a um ponto seguro da fazenda.

Como não parecia haver nenhuma outra possibilidade para resgatá-los, senão atravessando o rio, os vaqueiros concordaram com o oferecimento.

Ronaldo e Aurélio saltaram no rio, procurando vencer a braçadas a violenta correnteza, num esforço supremo para não serem levados rio abaixo.

Foi com um misto de animação e alívio que da margem do rio, vimos os dois chegarem ao outro lado.
A égua e o potrinho pastavam próximos da margem, desse modo, foi fácil fazê-los mergulharem no rio.

Mesmo de onde estávamos era possível ouvir o barulho quando ambos entraram na água.

A partir desse momento, uma cena inimaginável desenrolou-se frente aos espectadores daquela empreitada, que minutos antes parecera simples e, que de repente, se afigurava aterradora.

A égua estava nadando com desenvoltura e já havia chegado ao meio do rio, quando olhando ao seu redor notou que o filhote não estava ao seu lado. A correnteza o havia afastado e estava mais abaixo, num ponto em que as águas formavam um redemoinho. Ele se debatia, tentando sair da turbulência das águas, que o tragava impiedosamente.

A égua se voltou para o filhote e desceu em direção ao redemoinho. Sua intenção era clara para todos – tentaria salvá-lo. Conseguiu chegar até ele e segurá-lo pela orelha, procurando com esse gesto, puxá-lo para cima, para longe do redemoinho. Debateu-se, nadou, lutou, mas o grande esforço despendido nesta tarefa a extenuaram.

Aos poucos, foi parando de lutar, até que a orelha do potrinho soltou-se de sua boca. Mãe e filho afundaram nas águas profundas, escuras e fatais do Rio do Peixe. De repente, emergiram e mais uma vez pudemos vê-los, mas pareciam ter voltado apenas para um último suspiro de vida, voltaram a afundar e não mais emergiram, afogaram-se.

Um sentimento de tristeza e impotência tomou conta de todos, ninguém conseguia crer em tamanha ironia, uma vez que, muitos animais já velhos, atravessaram o rio sem problemas, enquanto que aqueles, jovens e saudáveis, sucumbiram à força das águas.

A natureza, como a querer nos comprovar que a cena fora real, os trouxe de volta num ponto mais abaixo do rio, deformados pela quantidade de água ingerida, depois flutuando lado a lado, mãe e filho foram levados pela correnteza, numa viagem sem volta pela imensidão do rio.

Rio adentro, rio afora, rio abaixo, rio.

Passaram-se os meses e, num dia ensolarado de maio, nosso pai morreu.

Um folheiro fazia sombra à sepultura no alto do morro e, logo abaixo, estava a lagoa, na qual dali a seis meses, as garças-brancas retornariam, seria novembro, a vida ressurgiria, para a terra, para as plantas, para os bichos e para os homens.




Ilustração de Rodrigo Chica para o conto Chuvas de Novembro

2 comentários:

Rosane Costa disse...

muito lindo a historia e no meu caso que conheço a fazenda flor da barra é muito emocionante**

Deniz Adriana disse...

Rosane Costa, uma grande alegria ler a sua mensagem em meu blog! Esse conto é sobre nossa terra, da terra onde nascemos,crescemos e vivemos tantas histórias. Lembro dos seus pais e de você pequeninha em minha casa. E agora já é mãe! Obrigada por visitar o blog e ficar para ler uma das histórias, obrigada por fazer parte da minha história. Um grande abraço!