domingo, 18 de agosto de 2013

Quatro Vezes Lucas...

Lucas seguiu um caminho temido por alguns e desejado por outros, o caminho do crime.

Foi traficante, ambulante, presidiário, hoje é professor.

No Cadeião de Pinheiros – para onde foi levado após se negar a continuar pagando um tributo à polícia para traficar livremente –, viu companheiros de cela serem torturados e assassinados e o tráfico persistir dentro do presídio.

Lucas não queria morrer, não queria ser mais traficante, presidiário, queria ser estudante.

Antes de ser preso havia prestado o vestibular da PUC-SP e fora aprovado. Sua mãe, vendo uma oportunidade do filho mudar de vida por meio dos estudos, foi até o setor judiciário da Universidade e conseguiu advogados que negociaram a sua liberdade condicional. Em troca, deveria apresentar bom comportamento e dedicação ao curso. Também conseguiram uma bolsa de estudos com a qual Lucas pode realizar seu desejo de cursar uma faculdade e um dia voltar a ser livre.

Quando terminou a Faculdade de Letras, já havia cumprido a sua pena e quis dar um passo ainda maior, fazer a prova para o Mestrado. Em meio a apostas de que não conseguiria, lá estava ele no primeiro dia de aula, aluno do Mestrado em Língua Portuguesa, como muitos jamais supunham ele seria, como o próprio Lucas chegou a duvidar que seria.

Lucas traficante… 
Lucas ambulante…
Lucas estudante…
Lucas professor…

Quatro vezes Lucas mudou a sua história.

Durante a graduação foi por vezes, marginalizado, ridicularizado, por falar a língua descrita por Manuel Bandeira no poema Evocação do Recife, como a língua que

"(...) Vinha da boca do povo na língua errada do povo 
Língua certa do povo 
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil 
Ao passo que nós 
O que fazemos 
É macaquear 
A sintaxe lusíada".

Em sua linguagem permeada por gírias, ele na verdade, se expressava da forma mais bonita, mais “português-Brasil”, “português-25-de-março”, por que era a forma que atingia, a um só tempo, o passante, o comprador, o ambulante, o policial, o povo.

Foi preciso que Lucas percorresse um longo caminho, até encontrar em seu jeito de falar, a matéria de um estudo, “A gíria do Brasil”, disciplina do Mestrado em Língua Portuguesa, que não tinha a gíria como objeto de crítica, mas de pesquisa, entendimento e aprendizado, sobre as formas de se expressar dos diversos grupos sociais.

Com entusiasmo ouviu o primeiro ensinamento do mestre Dino Pretti: “Mexer com linguagem, é mexer com a essência das pessoas, o professor deve ser, portanto, desprovido de preconceitos”.

Lucas encontrara o seu lugar – fora do presídio, dentro da Universidade.

sábado, 10 de agosto de 2013

Através da Janela

"Era uma viagem inventada no feliz; 
Para ele, produzia-se em caso de sonho. 
Saíam ainda com o escuro, 
o ar fino de cheiros desconhecidos".

Guimarães Rosa

Eu estava eufórica, era a primeira vez que viajaria para além dos limites da fazenda e dos povoados em volta.

Meu pai disse que seria um passeio mais longo, pois iríamos para outro Estado, onde ficaríamos por alguns dias.

Em meus oito anos, a possibilidade de conhecer outros lugares, provocava um misto de ansiedade e alegria.

Quando o grande dia chegou, minha mãe fez várias recomendações a meu pai: “não a deixe ficar sem comer”, “nem dormir tarde”, “não a deixe sozinha”. E também pediu para que eu cuidasse do meu pai.

Foi conosco, “Miro” que guiaria o carro, e “Tiana” que iria comigo no banco detrás, ambos eram meus irmãos mais velhos, filhos do primeiro casamento do meu pai.

A bordo de um Del Rei cinza, saímos da Fazenda Flor da Barra no interior da Bahia, com destino à capital de Minas Gerais, Belo Horizonte.

Meus olhos não desgrudavam da janela do carro, eu queria ver tudo, absorver tudo. Ver as cidades ficando distantes, distantes, pequenininhas, pequenininhas, até desaparecerem e a imagem ser substituída pela imensidão verde dos pastos e plantações.

Ao longe eu via rios, montanhas e pedras enormes. Desejei que minha mãe e meus irmãos também estivessem ali para verem tantas coisas bonitas, tantos lugares e pessoas, ou de ter uma forma de registrar tudo e mostrar a eles quando voltasse, mas não tinha. Aquelas paisagens, sensações e sentimentos, não poderiam ser guardados em nenhum outro lugar, além da minha memória.

Estava tão entretida observando a paisagem que mal ouvi a voz do meu pai dizendo que logo passaríamos pela cidade em que ele nasceu. Quando mencionou o nome, Almenara, minha curiosidade despertou, pois ele sempre falava dessa cidade.

Acabamos passando por Almenara à noite e não pude vê-la. Fiquei muito decepcionada, mas hoje penso que foi melhor assim, porque conservo a imagem da Almenara de sua infância, dos seus primeiros sonhos e descobertas.

Miro nos disse que pararíamos na próxima cidade, Teófilo Otoni, para dormirmos e podermos descansar um pouco para continuar a viagem no dia seguinte.

Estávamos já na metade do caminho para se chegar a Belo Horizonte. Por um lado, queria chegar logo a nosso destino, por outro, queria que aquela viagem não acabasse nunca, para continuar a ver e me encantar com coisas novas, para ouvir as histórias do meu pai que ele nunca contara antes.

Mas chegamos. Era noite e havia tantas luzes coloridas, prédios enormes! ... O Del Rei se perdeu em meio a uma vastidão de outros carros.

Na recepção do hotel a proprietária ficou surpresa com o fato de eu ser branca e meu pai negro. Nunca havia me ocorrido que houvesse alguma importância em se ter cores diferentes. Meu pai percebendo o espanto no rosto da mulher explicou:

– Ela se parece com a mãe, que é branca.

Nossos quartos ficavam nos últimos andares. Eu dividiria um quarto com Tiana e meu pai outro com Miro.

Pela manhã, quando descemos para tomar o café, meu pai disse que eu ficaria no hotel enquanto ele e meus irmãos sairiam para resolver algumas coisas.

Eu não vi problema algum, pois havia gostado do hotel. Antes de saírem me pediram para não sair do quarto. Ao que também obedeci prontamente.

Mais tarde veio a camareira para limpá-lo. Era uma moça muito simpática, e conversamos durante todo o tempo em que ficou no quarto.

Já era quase meio dia e não haviam retornado. Ouvi então uma batida na porta e abri esperançosa de que fossem eles. Era a camareira novamente, dessa vez, veio me perguntar se eu estava com fome, pois me trouxe um lanche e explicou que no hotel não serviam almoço. Eu aceitei e agradeci, comendo tudo num instante.

Logo depois chegaram e ouvi meu irmão comentar com meu pai que a cirurgia seria no dia seguinte. Não entendi bem, será de que cirurgia falavam?

– Pai, quem vai fazer uma cirurgia? Perguntei-lhe.

– Sou eu filha, foi por isso que viemos para essa cidade, estou doente e preciso fazer uma cirurgia para ficar bom.

Só então compreendi que aquela não era uma viagem de férias.

De repente, fragmentos de conversas, de momentos dispersos no tempo, surgiram com nitidez em minha memória. E uma palavra que eu não conhecia ecoava como se viesse de um sonho antigo, que eu quisera esquecer: metástase.

O pedido da minha mãe, para que eu cuidasse do meu pai ganhou outro significado. E nos dias em que passamos em Belo Horizonte, não voltei a ficar no hotel, o acompanhei no dia da cirurgia e durante todo o período de internação até o dia em que teve alta e o médico disse que poderíamos voltar para a Bahia.

Mas ainda não queria que aquela viagem terminasse e fiz um pedido a meu pai.

– Pai, eu queria ver o mar.

– Mas minha filha, não existe mar em Minas Gerais e a fazenda fica perto do litoral – explicou-me.

– Mas nunca vi o mar e queria vê-lo com você.

Meu pai conversou com meus irmãos e concordaram em estender a viagem.

No dia seguinte deixamos Belo Horizonte. Mais uma vez, meu coração batia como que enfeitiçado, cheio de uma alegria grande.

Uma brisa suave tocava meu rosto através da janela e um azul que beijava o céu transformava todo meu olhar em infinito. Tudo era mar. Imensidão de água, cheiros e cores.

Descemos do carro e num instante que tinha ares de eternidade, fui abraçada pelo vento e acariciada pela areia fina de Copacabana.

O mar era tudo. Toda beleza condensada em azul, mundo entrando pelos olhos. Tudo o que hoje eu tenho saudade.

O meu pai olhava para um ponto ao longe, eu segui o seu olhar e também vi, era o Cristo Redentor de braços abertos sobre o Rio de Janeiro, protegendo e abençoando a cidade maravilhosa. Era uma esperança de que tudo daria certo.

Ficamos apenas um dia no Rio de Janeiro e seguimos para São Paulo, onde meu avô estava já há alguns meses também se tratando de um câncer.

São Paulo era multidão, de carros, de pessoas, de sons. Era uma cidade em tempo gerúndio, onde tudo era movimento.

Ficamos alguns dias e meu avô ficou feliz com nossa visita.

Sem poder mais postergar a viagem, retornamos à Bahia.

Meu pai não pode voltar para a fazenda, porque ainda precisava de cuidados médicos, eu também fiquei na cidade. Foram dias de muitas histórias e risadas. E dores constantes e uma palavra que voltava não mais como fragmento de um sonho, mas parte integrante da realidade. Metástase.

Fomos ao médico e o ouvi dizer a meu pai, que ele já podia retornar à fazenda. Por muito tempo, aquilo foi tudo o que eu mais quis ouvir, que voltaríamos para casa, mas voltar significava agora que já não havia caminhos possíveis.

Naquele mesmo dia, meu pai pediu a um amigo para que me levasse pra casa, mas ele não iria conosco.

Levou-me a uma loja no centro da cidade, comprou uma boneca para mim e outra para minha irmã, me deu a bênção e colocou-me dentro do carro.

Eu acenei através da janela, mas ele já não via.

Por muito tempo, toda a viagem ficou encoberta num ponto distante da minha memória. Só a lembrança desse aceno através da janela permaneceu em mim. E de que não gostava de olhar o mar.

Mas lendo um texto de um amigo chamado “As memórias que guardo do meu pai”, memórias doces, de momentos de cumplicidade e companheirismo, de repente, toda a névoa se esvaneceu e minhas próprias memórias se fizeram nítidas. E como eram belas! Encontrei rios, serras, pedras, estradas com curvas e retas que levavam a lugares surpreendentes e no final da viagem, o mar. E meu pai, me contando histórias, voltando pra casa, cheio de uma alegria grande, como a minha.