quinta-feira, 28 de março de 2013

Senha 24

Olhares reticentes, saudação sem respostas, silêncio.

Numa sala da ETEC de Santo Amaro, retirei minha senha e sentei-me para aguardar junto a outros 23 professores, a chamada para fazer a inscrição no Processo Seletivo da Instituição. 

Pensava no quanto minha espera seria longa, ao olhar em volta e não encontrar nenhum rosto conhecido ou que demonstrasse qualquer simpatia. 

De repente, vi entrar uma mulher elegantemente vestida, com olhar altivo, mas cheio de ternura. Retirou sua senha, sentou-se ao meu lado e para minha surpresa, quebrou o silêncio opressivo dizendo:

– Deniz! 

Olhei-a com atenção e reconheci o rosto cheio de simpatia, era uma colega da Faculdade que não via a cerca de seis anos.

Abraçamo-nos, felizes pelo reencontro inesperado.

Ela quis saber por onde andei, se havia terminado o mestrado. Respondi que andei por muitos lugares, trabalhei em outros tantos e só agora voltava a estudar. E que tinha inventado de contar estórias num blog.

Eu perguntei sobre ela. Contou-me que se casou.

A ternura desapareceu do seu olhar e voltou a perguntar sobre mim:

– Me fale mais sobre o blog, que tipo de histórias você conta?

– São histórias que vivi, ou de encontros com pessoas que me ensinaram muita coisa com suas próprias histórias – respondi.

Ela então fez um pedido:

– Gostaria de contar uma história para que você a reconte em seu blog.

– Que história? – questionei.

– É sobre a violência contra a mulher. Durante o meu casamento fui agredida muitas vezes, mas meu marido, sempre se desculpava depois, me beijava e tudo ficava perfeito de novo.

– Ele ficava violento por qualquer motivo, principalmente, se eu discordasse de alguma coisa, como quando decidiu que precisávamos comprar um carro. Eu disse que era melhor dar entrada num apartamento e sair do aluguel, mas ele não ouviu, e levei a primeira surra. Compramos o carro, ele ficou feliz. Mas não demorou a voltar a me agredir. Passei a ter medo, um medo que me paralisava. Por isso, não registrava nenhum boletim de ocorrência.

– Até que um dia, ele me segurou pelo pescoço e tentou estrangular-me, consegui gritar por socorro e os vizinhos me salvaram. Naquele dia percebi que ele nunca iria mudar, que na verdade, quem teria que mudar seria eu e decidi pedir o divórcio. Novamente disse que estava arrependido, que nunca mais tocaria em mim se eu voltasse, mas já não tinha medo e segui adiante com o divórcio, ele disse que só aceitava se eu abrisse mão do carro que compramos juntos.

– Mesmo sabendo que não era justo, pois havia trabalhado muito para pagar aquele carro, ainda assim aceitei, porque naquele momento nada era mais valioso que a minha liberdade.

– Ele ficou contente, acreditava que mais uma vez, havia me intimidado, mas o denunciei à polícia. Hoje sou livre. 

– Fiz o intercâmbio que sempre quis, para aperfeiçoar o Espanhol, retornei à minha cidade em Minas para rever os amigos, dos quais me afastei após o casamento e, acabei reencontrando com o meu primeiro namorado. Resultado. Nos casamos, e com ele descobri que é possível ser feliz com outra pessoa, desde que a respeite, confie em você e a incentive a alcançar os seus sonhos. É por causa do incentivo do meu marido que vim aqui hoje fazer a inscrição para a vaga de Professora de Espanhol.

– Deniz, quis partilhar esta história, para alertar às mulheres que são agredidas, que têm medo, que passam por qualquer tipo de violência, que apesar de ser muito difícil quebrar o silêncio, essa é a única forma de sobreviver. A gente estuda, trabalha, tem amigos, tem família, mas de repente, deixa de fazer parte de tudo isso e vive em função de um opressor. Acha que nunca vai acontecer conosco, o que é um erro. 

– A violência doméstica não é praticada apenas contra mulheres que não tiveram acesso à informação, ao estudo, nada nos prepara para essa agressão que não é apenas física. O começo nunca é um tapa, um puxão de cabelo, um chute. O começo é aquele sonho que acalenta e o seu companheiro diz que é besteira, e você desiste, porque acaba dando razão à ele. É aquele emprego que almejava e conseguiu, mas você desiste, porque o seu companheiro diz que gostaria de tê-la sempre ao seu lado em casa. É aquele encontro com os amigos que você desiste de ir, porque o seu companheiro diz que essas amizades não são boas para você. 

– Quando vem o primeiro tapa, você já não tem mais sonhos, nem objetivos, nem amigos, nem voz. 

– Segurei suas mãos entre as minhas e a agradeci pela confiança em contar-me sua história, pelos sorrisos que fizeram das horas, segundos, pela coragem de seguir adiante com aquela ternura que só quem já sofreu, já chorou, já caiu, pode trazer no olhar.

Senha 24!

– Minha vez – sorri.

– Boa sorte amiga! – desejou-me, também sorrindo.

– Pra nós minha querida, pra nós.

sábado, 2 de março de 2013

Era uma vez uma casa...

– Você não deveria ir a esse jogo.

– Porque não pequenina?

– Por que vai acontecer uma coisa ruim com você lá.

Aos quatro anos de idade eu conversava com Astrogildo. Não o conhecia da escola, nem da rua em que morávamos, o conhecia das visitas que fazia à minha família no povoado de São João do Sul, interior da Bahia.

Astrogildo era o melhor amigo do meu pai. Lembro-me de vê-los jogarem sinuca por horas, num desafio que nunca terminava. Ele era, sobretudo, um andarilho. E, embora tivesse uma casa no povoado, sua verdadeira casa era o mundo.

Cada vez que voltava, trazia-me um presente, punha-me no colo e contava histórias sobre as terras distantes por onde andou, as pessoas com quem cruzou e as aventuras que viveu. Eu o escutava com os olhos brilhantes de curiosidade. Não imaginava o mundo para além do povoado. Nunca tinha saído de lá, quase ninguém tinha, nem mesmo as pessoas grandes.

No povoado, todos o admiravam, porque conhecia lugares onde ninguém mais tinha ido e falava línguas diferentes da nossa. Era um homem de cultura, meu pai dizia. Tinha conhecimento e generosidade em transmiti-lo. Generosidade talvez fosse a melhor palavra para defini-lo, não raro, ao chegar ao povoado, fazia grandes feiras e doava aos moradores mais pobres. Aonde ele chegava havia fartura e ninguém sentia fome.

Mas naquele dia, havia algo diferente, eu não queria ouvir suas histórias, queria que ouvisse a minha, não sei por que disse aquelas palavras a ele, nunca soube. Ele também nunca as escutou.

Astrogildo foi ao jogo, o seu time perdeu. Houve uma briga, ele se envolveu, feriu e foi ferido. Deixou o povoado, foragido, anti-herói. E o povo esqueceu os anos de generosidade.

Alguns meses se passaram e um dia ele retornou. Não me trouxe um presente, como das outras vezes, mas me contou uma história. A história de um homem que perdeu sua família, mas encontrara outra. Que era sábio, mas não soubera escutar, que embora tivesse ganhado muito dinheiro, só tinha um bem, uma casa. Compreendi então que falava de si mesmo. Depois, retirou um papel de uma maleta de couro e entregou-me, dizendo:

– Esse é o meu presente para você. Era a escritura da casa.

E novamente foi embora.

Quando retornou ao povoado, eu estava com oito anos, havia crescido bastante, a maior mudança, contudo, não foi em minha altura, ou em meus cabelos que aos poucos perdiam os reflexos dourados, para ganharem um tom de castanho, a maior mudança, foi no motivo da sua volta. Ele voltara para o enterro do seu melhor amigo, o meu pai, que lutara contra um câncer nos anos em que estivera ausente, e perdera.

Foi Astrogildo quem nos abraçou a todos e chorou conosco. Meu pai era seu porto seguro, sua direção, seu irmão.

O desafio das partidas de sinuca havia terminado. Fim de um jogo sem vencedores.

Com a morte do meu pai, nossa vida mudou. Morávamos numa fazenda, com um grande rio e uma lagoa, onde as garças-brancas nos visitavam em novembro, tínhamos uma casa com varanda, de onde olhávamos os pastos e os bichos, tínhamos uma família e amigos. Perdemos tudo, primeiro a fazenda, depois os outros bens e com eles os amigos.

Quiseram nos dividir, minha mãe não deixou, disse que tinha força e coragem para trabalhar e criar os filhos.

Não tínhamos mais nada, só uns aos outros e a casa que Astrogildo me dera.

Mas meu pai havia permitido que um amigo vereador usasse a garagem da casa, enquanto morávamos na fazenda. Após a sua morte, o amigo quis nos tomar a casa, alegando que meu pai lhe dera. Ele tinha influência política, mas minha mãe tinha algo mais forte, coragem e conhecimento de um detalhe que ele não sabia. Que a casa não era do meu pai, era minha. Mas ainda assim, o vereador insistiu que a casa era dele. O caso foi parar num Tribunal e, uma vez mais, ganhei a casa.

Foi nela que cresci, que minha mãe montou uma pequena mercearia onde antes fora a garagem e trabalhou para nos criar. 

Aos 14 anos comecei a lecionar para uma turminha de pré-escolar. Com esse trabalho pude ajudar minha mãe com as despesas de casa e soube o que gostaria de ser para a vida toda – professora. Descobri no ensino além de um meio de passar e adquirir conhecimentos, um meio de levar esperança de um futuro melhor a meus alunos, minha mãe e meus irmãos.

Quando fiz 16 anos, Astrogildo retornou ao povoado, havia se casado com Miriam, uma morena bonita e muito simpática.

Foi nessa época que soube por que ele me dera a casa.

– Deniz, nem todas as histórias que vivi, foram bonitas como as contei a você, já fiz muitas coisas das quais não me orgulho. Mas sempre que voltava, encontrava em sua casa uma família. Vocês me salvaram de muitas maneiras, principalmente de mim mesmo. Dei a casa a você, para que não importa aonde vá, o que viva, ter um lugar que é seu, para onde sempre poderá voltar.

Um dia, chegou a minha vez de deixar o povoado, de conhecer terras distantes e viver outras histórias.

Tornei-me professora voluntária do Programa Alfabetização Solidária.

Quando voltei ao povoado, reencontrei Astrogildo. Seus cabelos mudaram, já não eram negros, nem sua pele firme, os fios tingiram-se de branco e na pele havia marcas do tempo. A mulher o abandonara, ele não tinha para quem voltar, nem para onde ir, e nos procurou.

Chamei Astrogildo e, segurando suas mãos enrugadas entre as minhas, coloquei sobre elas as chaves da casa, dizendo-lhe: – É sua novamente. Você terá sempre para onde voltar e terá sempre por quem voltar. Somos sua família.

Ele ficou alguns anos, e passou a ser eu quem voltava e lhe contava histórias das terras por onde tinha andado, mas apenas seu corpo envelhecera, sua alma continuara andarilha e, mais uma vez, deixou o povoado.

Foi a última vez que o vi.

Ambos nos tornamos andarilhos.

Em São Paulo, entrei para a Faculdade, contudo, não tinha dinheiro para pagá-la. E, pela primeira vez, pensei em vender minha casa, mas consegui uma bolsa de estudos para o curso de Letras na PUC-SP e não precisei vendê-la.

Com os anos, foram muitas as dificuldades pelas quais passei, mas não voltei a pensar em vender minha casa, porque ela é mais preciosa que o dinheiro que eu poderia ganhar com sua venda. É o meu lugar no mundo, para onde sempre poderei voltar.

Dedico esta história a meu amigo Astrogildo, que está por aí, mundo afora, colhendo histórias para contar-me quando voltar.

"Ele era um andarilho.
Ao passar pela Aldeia ele sempre me pareceu
a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida".

Manoel de Barros



Povoado de São João do Sul - Bahia