quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A Rosa

Rosa trazia os lábios sempre coloridos por um batom, a face iluminada pela aplicação de algumas camadas de blush e os cabelos presos com cuidado, com grampos nas laterais. Vestia-se com roupas simples e imaculadamente limpas e bem passadas.

Trabalhava o dia inteiro sob o sol inclemente da Bahia, era boia-fria.

Saía antes do sol nascer, num caminhão que a levava junto com outros jovens para a fazenda onde trabalhavam no corte de cana-de-açúcar e de onde só retornavam ao final da tarde.

Ganhava cinco reais por dia.

Rosa atravessava o dia desprovida de enfeites ou de algo que lembrasse, ainda que vagamente, sua condição de mulher.

Naquele campo de trabalho, era apenas mais uma entre tantos outros, homens e mulheres, sem rostos, sem identidade, sem sonhos, apenas mão de obra, disponível e barata.

Mas à noite, durante as aulas de alfabetização, ela se permitia ser mulher e, sobretudo, se permitia ter uma vida diferente – a de estudante.

– Professora, eu quero aprender a ler para um dia trabalhar em outra coisa, confidenciou-me numa aula.

Segurei suas mãos calejadas entre as minhas e respondi:

– Rosa, sua força, sua atitude em se por bonita para enfrentar a vida, em fazer das mãos calejadas que seguram enxadas e foices, mãos delicadas que seguram a caneta e traçam linhas, novas histórias, só se encontra em quem tem vocação para ser grande.

Ela sorriu. Um sorriso de carmim que tinha o peso das experiências vividas.

Eu também lhe sorri, feliz em ser professora de pessoas corajosas e com tanta vontade de ser.


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Um piano na escuridão

O que mais me comove em música
São estas notas soltas
- pobres notas únicas -
Que do teclado arranca o afinador de pianos.

Mário Quintana

Fazia Solidão.

Leituras inacabadas, poltronas vazias, livros espalhados sobre os balcões, caos displicente de palavras, vozes emudecidas, passos interrompidos, luzes apagadas, fim de jornada.

Em meio ao silêncio, profundo e absoluto, o som tênue, quase imperceptível de uma canção, ressoava distante no tempo e no espaço e preenchia com notas dissolutas de calmaria e êxtase, a escuridão.

Andei por entre as estantes, à procura de um caminho que levasse ao conhecimento da melodia, que não parecia vir de lugar algum e ao mesmo tempo estava em todos os lugares, da melodia que não era de se pegar, era de se sentir, “de estarrecer de todo a gente”, era mistério.

Cheguei a um corredor com duas portas. Uma delas levava à saída da Livraria e ao fim do meu idílio, a outra, ao auditório. Algumas pessoas cruzaram a primeira porta e foram embora. Tinham pressa e não ouviam a música.

Aproximei-me da segunda porta, que estava entreaberta, o ritmo agora era intenso, vibrante, as notas soltas se juntavam a outras e revelavam a origem da canção que eu procurava.

E foi o que não se podia prever.

No palco do auditório sem plateia, sem a luz de holofotes, sem aplausos, ele tocava o piano na escuridão, com a intimidade de um amante e a paixão com que falava de literatura.

A escuridão voltou a cobrir meus olhos, não pela ausência da luz, mas pela presença das lágrimas, diante da beleza daquele instante e do conhecimento de quem era o pianista.

Era o vendedor de poesia. Era um anônimo artista.

Ao final do dia, ele encontrara no auditório, um piano na escuridão. As teclas eram tão conhecidas suas quanto as letras. Permitiu-se tocá-las, senti-las e extrair delas a melodia, que permanece ressoando no tempo, em versos livres, notas soltas, encantamento que nos toma sem explicação.