“Um livro nunca se encerra. Nunca tem fim.
Não existe apenas uma única vez.
Ele é a história do leitor. "
Alberto Manguel
No horário do meu almoço, costumo me sentar num banco em frente a um lago cheio de carpas coloridas, ou andar um pouco pelo campus, parando ora para ver os pavões, belos em sua plumagem majestosa, ora para observar os alunos jogarem xadrez, em partidas num enorme tabuleiro.
Hoje chovia quando saí e não pude ver as carpas. Mas vi algo que transformou o meu olhar em imensidão. Sentada num banco no meio de um pequeno bosque, em companhia somente dos livros e de alguns cadernos, uma senhora lia.
Alheia aos pingos de chuva, ao leve vento frio que soprava por entre as árvores, ao pequeno movimento de pessoas em volta, ela lia.
De repente seu olhar se ergueu e ela me sorriu, aproximei-me, pedi licença e lhe perguntei o que lia.
Ela convidou-me para sentar ao seu lado e com generosidade me contou que tinha muita dificuldade para estudar, pois ficara muitos anos longe da escola, e só agora após ter criado os filhos, conseguiu tirar um tempo para si mesma e seus sonhos.
Estava com 65 anos, cursava a Faculdade de Geografia no período da manhã e a Faculdade de Letras no período da tarde. No intervalo entre um curso e outro, lia, buscava conhecer um pouco mais sobre o universo das palavras, sobre as pessoas, os lugares, sobre o que acontecia no mundo dentro e fora da gente.
Enquanto me contava um pouco da sua história, retirou da bolsa, de tecido gasto e marcas do tempo, um pacote de bolacha de água e sal e uma garrafa d’água. Mais uma vez me sorriu e gentilmente me ofereceu o seu lanche simples, sua refeição do dia.
Meu coração se apertou no peito, eu havia acabado de sair do restaurante da Universidade, onde garçons atenciosos serviram pratos fartos, preparados com cuidado, onde não imaginei que do lado de fora alguém sentia fome.
Eu lhe perguntei se gostaria de almoçar, ela recusou com polidez, disse que sua maior fome era de saber, de conhecer mais sobre as palavras.
Então lhe contei que talvez pudesse ajudá-la, trazia na minha própria bolsa de pano o livro "Uma história da leitura" do Alberto Manguel e lhe entreguei, ela pegou com cuidado e me olhou com receio de molhar o livro com as gotas de chuva que ainda caía, eu disse para não se preocupar, podia ler onde quisesse, era um presente meu.
Falei-lhe de um tempo em que também só trazia na bolsa um pacote de bolacha de água e sal para passar o dia, era estudante do Cursinho da Poli e sonhava em um dia cursar uma Faculdade.
Ela quis saber se consegui, eu lhe contei que sim, que fui aprovada no vestibular da PUC-SP onde fui contemplada com uma bolsa de estudos e tive a oportunidade de me formar professora.
Ela me fez uma pergunta inesperada.
- Será que eu consigo?
Eu então lhe respondi:
- Se você tem coragem para enfrentar o frio e a chuva para se dedicar à leitura, de sair da zona norte todos os dias para estudar na zona sul, de se privar do almoço para comprar livros, você já conseguiu o mais importante, ter determinação e fé. Não tenho dúvida de que chegará onde desejar e conte comigo no que eu puder ajudar.
Seus olhos choveram, os meus também.
Gratidão Maria, por seu exemplo de coragem, determinação e fé.
Gratidão por esta trajetória tão digna e tão bonita.
É por poder contribuir com pessoas com histórias como a sua, que tenho imenso orgulho de ser professora.