terça-feira, 26 de abril de 2016

Felicidade é:

Um fim de tarde na livraria.
Descobrir uma nova edição do seu livro preferido.
Um café quentinho com churros de doce de leite.
Presentear uma criança.
Uma conversa amena, um sorriso espontâneo.
Compartilhar um sonho.
Fazer uma nova amizade.
Ouvir uma canção ao longe.
Tirar uma fotografia.
Ensinar uma caligrafia.
Descobrir o universo no olhar de uma astronauta.
Colorir o mundo com lápis da Faber Castell.
Livros.


quinta-feira, 30 de julho de 2015

Palavras

"Os andarilhos, as crianças e os passarinhos 
têm o dom de ser poesia." 

Manoel de Barros 

Diálogo com uma turminha que observava o lago cheio de carpas do UniÍtalo:

Menino mais velho – Quem botou os peixes aqui moça, foi você?

Eu – Não, acho que foi o Reitor.

Menino mais novo – Ele botou os peixinhos aqui para a gente amar?

Eu – (risos) é acho que foi sim.

Menino mais velho – Você mora aqui? Eu queria morar aqui, tem pavão, tem natureza.

Eu – Trabalho aqui, é bonito né?

Menino mais velho – Você trabalha aqui? E faz o quê?

Eu – Trabalho com palavras.

Pergunto para cada um, se gostariam de estudar em uma Universidade quando crescessem e o que gostariam de estudar.

Menino mais velho – Eu queria mesmo é conhecer o mundo, é grande né? Quero ser jogador de futebol.

Menino mais novo – Meu negócio é pipa, você sabe empinar pipa moça?

Eu – Não, um dia você me ensina?

Menino mais novo – Ah! Mas isso toda criança sabe fazer!

E de repente a voz de uma menina que só agora eu ouvia me perguntou:

– Moça, quem trabalha com palavras não pode ser criança e fazê-las voarem no céu como pipas?

Senti o coração aquecido por aquela pergunta e, então, respondi:

– Sim minha querida, acho que trabalhar com palavras é fazê-las saírem do papel e se sentir um pouco criança enquanto as vê voarem tão alto, mas tão alto, que todas as crianças do mundo possam ouvi-las e se encantar com elas...

E ouvi uma vez mais aquela doce voz:

– Então é isso que quero fazer aqui, estudar palavras.



terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Cotidiano

Sufocou a dor da notícia que acabara que receber, colocou um meio sorriso no rosto e seguiu retirando o lixo dos banheiros.

Numa sala ao lado, alheias às lágrimas que teimavam em cair sobre a face enrugada, pessoas importantes, discutiam temas relevantes.

Pediu licença, entrou sem fazer barulho e retirou o último cesto de lixo.

Se despediu como fazia sempre, com um sorriso no rosto e a sensação de dever cumprido, os vidros reluziam, o carpete estava macio e sem manchas, sobre a mesa os blocos de notas, canetas e lápis descansavam.

Por entre as persianas uma leve brisa assoprava trazendo alento ao calor sufocante de janeiro. Um cheiro doce de flores de jasmim envolvia todo o ambiente.

Seguiu para o velório do irmão que falecera naquela manhã, a vida com suas dores e perdas, não cabia na pauta da reunião de temas relevantes.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

À Espera da Felicidade

Meus irmãos e eu estávamos ansiosos e muitos contentes, nossa prima Aliene chegaria de São Paulo para passar o Natal conosco na Fazenda.

Durante vários dias minha mãe juntou leite e fez requeijão, queijo, doce e deliciosos biscoitos de polvilho para esperá-la.

Estávamos todos na estrada esperando pelo ônibus que a traria.

A cada som de motor, nossos olhos brilhavam em expectativa, que era frustrada quando, na verdade, o que aparecia era um caminhão ou outro carro qualquer.

Só um ônibus passava por aquela estrada. Ele saía pela manhã de Monte Alegre, povoado próximo à fazenda, com destino a Porto Seguro, e só retornava à tarde. Mas o dia já envelhecia no horizonte e nada de Aliene.

Sentamos no chão, um ao lado do outro e continuamos a esperar. Até que avistamos ao longe, um pontinho em meio a uma nuvem cinza de poeira, só podia ser o ônibus. Vinha serpenteando pela estrada até se aproximar o bastante para termos certeza de que logo veríamos Aliene chegar.

Levantamos e pulamos de alegria. Ela chegara! Ela chegara! Gritávamos um para o outro em incontida felicidade.

O ônibus parou bem próximo de onde estávamos e, após alguns segundos intermináveis, Aliene desceu sorrindo e acenando para a gente. Ela abriu o bagageiro e de dentro tirou uma mala enorme, outra menor e algumas bolsas. Corremos para ajudá-la com a bagagem.

Minha mãe saiu na varanda para ver a razão de tamanha algazarra e ao ver Aliene apressou-se a abrir o portão para que entrássemos.

Foram muitos abraços apertados, beijos estalados e nós em volta esperando curiosos para saber o que ela trouxera nas malas.

Não tivemos que esperar muito, percebendo em nossos olhos brilhantes de expectativas o que queríamos, ela começou a abrir a mala maior. De dentro tirou várias coisas, roupas, sapatos, brinquedos. Ficamos atentos para saber a quem ela os daria. Cada um desejando em silêncio ser o primeiro.

Para meus irmãos Ronaldo, Gute e Bruno, ela entregou alguns shorts, camisetas, sapatos e várias bolinhas verdes, tão macias, que pareciam de pelúcia. E nos explicou serem bolinhas de tênis, um esporte muito praticado em São Paulo.

Para minha irmã Renata, um conjunto de saia e blusa rosa, vestidos, enfeites para o cabelo e um ursinho marrom.

Para minha mãe, calça legging, blusas, saias, tênis e um rádio-relógio, que a deixou encantada com suas múltiplas funções. Ela rapidamente o sintonizou numa rádio local e pudemos ouvir muitas canções.

Para mim, trouxe blusas, saias de vários modelos e um conjunto de saia e blusa parecido com o de Renata, porém, o meu era amarelo. Ganhei também dois livros, um contava a história de um Rei que não tinha orelha e o outro, a história da arca de Noé, eram lindos, com várias ilustrações coloridas. Aliene entregou-me ainda, com olhar de cumplicidade, um diário com cadeado. Foi nesse diário que registrei pela primeira vez as minhas ideias e impressões sobre as coisas.

Quando achávamos que já havíamos ganhado tudo que podíamos, Aliene retirou de um canto secreto da mala, duas bonecas Barbies! Deu uma para Renata e outra para mim. Eram lindas, com longos cabelos loiros, vestidos de princesa e sapatos de salto alto.

Enquanto Renata e eu já brincávamos com as bonecas, minha prima continuava a retirar coisas da mala: um tênis AllStar, duas blusas de frio, uma colorida de vermelho, azul e branco, outra branca e rosa.

Contou-nos que foram dos filhos do patrão dela, mas trouxera porque ainda estavam em bom estado e poderíamos usá-las por muito tempo ainda. Pediu para as experimentarmos e a quem servisse pudesse ficar.

Calcei o par de tênis AllStar e serviram direitinho! Eram brancos e fiquei feliz em saber que combinariam com meu uniforme da escola que era branco e azul.

A blusa de frio colorida serviu em Ronaldo. Era cheia de novidades, na parte de dentro havia vários bolsos, a gola podia ser aberta e de dentro saía um capuz, tinha muitos zíperes e botões do lado de fora. Cada manga era de uma cor, uma vermelha e a outra azul.

A outra blusa serviu em mim, era impermeável e toda branca, exceto pelos punhos, gola e zíperes que eram rosas, formando um bonito contraste.

O fato de ser verão e não pudermos usá-las, não diminuiu a minha alegria e a de meu irmão com nossas primeiras blusas de frio. Esperaríamos por um dia chuvoso na Bahia para usá-las, por um dia em que seríamos aquecidos por um calor que não viria do sol, mas do abraço da lã macia.

Aliene trouxe ainda, material escolar para todos nós. E para nossa surpresa ainda tirou mais coisas da mala preta, que a essa altura já acreditávamos ser mágica: uma caixa de panetone, uma caixa de bombons, um saco de balas e pirulitos, várias caixinhas de gelatina, chá em saquinho, que era uma grande novidade para nós, acostumados a colher no quintal de casa, a erva-cidreira e o capim santo para o chá servido com biscoitos quentinhos aos finais de tarde.

Finalmente, deixamos Aliene e minha mãe conversarem a sós, os adultos sempre tinham muitas coisas a dizer. Já o nosso diálogo era silencioso, agradecíamos por ter alguém que cuidaria da gente mesmo na ausência de nosso pai. Agradecíamos por ter um Natal como deveria ser o de toda criança, com presentes, comida na mesa e sorrisos nos rostos.

Aliene voltaria nos anos seguintes, sempre carregada de presentes, sempre cheia de sorrisos, sempre dona de uma alegria que só quem faz uma criança feliz, pode ter.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Carta de Gabriel García Márquez

“Se, por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo e me presenteasse com um pedaço de vida, possivelmente não diria tudo o que penso, mas, certamente pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo o que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, pois sei que a cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os demais parassem, acordaria quando os outros dormem. Escutaria quando os outros falassem e desfrutaria de um bom sorvete de chocolate.

Se Deus me presenteasse com um pedaço de vida vestiria simplesmente, jorgar-me-ia de bruços no solo, deixando a descoberto não apenas meu corpo, como também a minha alma.

Deus meu, se eu tivesse um coração, escreveria o meu ódio sobre o gelo e esperaria que o sol saísse. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas um poema de Mário Benedetti e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à Lua. Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos espinhos e o encarnado beijo das suas pétalas.

Deus meu, se eu tivesse um pedaço de vida!… Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas: amo-te, amo-te. Convenceria cada mulher e cada homem de que são os meus favoritos e viveria apaixonado pelo amor.

Aos homens, provar-lhes-ia como estão enganados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saber que envelhecem quando deixam de se apaixonar.

A uma criança, daria asas, mas deixaria que aprendesse a voar sozinha.

Aos velhos ensinaria que a morte não chega com a velhice, mas com o esquecimento.

Tantas coisas aprendi com vocês, os homens… Aprendi que todos querem viver no cimo da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a rampa. Aprendi que quando um recém-nascido aperta, com sua pequena mão, pela primeira vez, o dedo do pai, tem-no prisioneiro para sempre. Aprendi que um homem só tem o direito de olhar um outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se.

São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas, a mim não poderão servir muito, porque quando me olharem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer.”

Carta divulgada por Jaime García Marquéz, irmão do autor, que anunciou ao mundo que García Marquéz sofria de uma demência senil, doença que fez com que deixasse de escrever livros, mas que não lhe tirou a força das palavras.

Em cada palavra há beleza, simplicidade, poesia. Em cada palavra há, sobretudo, um aprendizado de humanidade, por isso, quis compartilhá-la. 

domingo, 18 de agosto de 2013

Quatro Vezes Lucas...

Lucas seguiu um caminho temido por alguns e desejado por outros, o caminho do crime.

Foi traficante, ambulante, presidiário, hoje é professor.

No Cadeião de Pinheiros – para onde foi levado após se negar a continuar pagando um tributo à polícia para traficar livremente –, viu companheiros de cela serem torturados e assassinados e o tráfico persistir dentro do presídio.

Lucas não queria morrer, não queria ser mais traficante, presidiário, queria ser estudante.

Antes de ser preso havia prestado o vestibular da PUC-SP e fora aprovado. Sua mãe, vendo uma oportunidade do filho mudar de vida por meio dos estudos, foi até o setor judiciário da Universidade e conseguiu advogados que negociaram a sua liberdade condicional. Em troca, deveria apresentar bom comportamento e dedicação ao curso. Também conseguiram uma bolsa de estudos com a qual Lucas pode realizar seu desejo de cursar uma faculdade e um dia voltar a ser livre.

Quando terminou a Faculdade de Letras, já havia cumprido a sua pena e quis dar um passo ainda maior, fazer a prova para o Mestrado. Em meio a apostas de que não conseguiria, lá estava ele no primeiro dia de aula, aluno do Mestrado em Língua Portuguesa, como muitos jamais supunham ele seria, como o próprio Lucas chegou a duvidar que seria.

Lucas traficante… 
Lucas ambulante…
Lucas estudante…
Lucas professor…

Quatro vezes Lucas mudou a sua história.

Durante a graduação foi por vezes, marginalizado, ridicularizado, por falar a língua descrita por Manuel Bandeira no poema Evocação do Recife, como a língua que

"(...) Vinha da boca do povo na língua errada do povo 
Língua certa do povo 
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil 
Ao passo que nós 
O que fazemos 
É macaquear 
A sintaxe lusíada".

Em sua linguagem permeada por gírias, ele na verdade, se expressava da forma mais bonita, mais “português-Brasil”, “português-25-de-março”, por que era a forma que atingia, a um só tempo, o passante, o comprador, o ambulante, o policial, o povo.

Foi preciso que Lucas percorresse um longo caminho, até encontrar em seu jeito de falar, a matéria de um estudo, “A gíria do Brasil”, disciplina do Mestrado em Língua Portuguesa, que não tinha a gíria como objeto de crítica, mas de pesquisa, entendimento e aprendizado, sobre as formas de se expressar dos diversos grupos sociais.

Com entusiasmo ouviu o primeiro ensinamento do mestre Dino Pretti: “Mexer com linguagem, é mexer com a essência das pessoas, o professor deve ser, portanto, desprovido de preconceitos”.

Lucas encontrara o seu lugar – fora do presídio, dentro da Universidade.

sábado, 10 de agosto de 2013

Através da Janela

"Era uma viagem inventada no feliz; 
Para ele, produzia-se em caso de sonho. 
Saíam ainda com o escuro, 
o ar fino de cheiros desconhecidos".

Guimarães Rosa

Eu estava eufórica, era a primeira vez que viajaria para além dos limites da fazenda e dos povoados em volta.

Meu pai disse que seria um passeio mais longo, pois iríamos para outro Estado, onde ficaríamos por alguns dias.

Em meus oito anos, a possibilidade de conhecer outros lugares, provocava um misto de ansiedade e alegria.

Quando o grande dia chegou, minha mãe fez várias recomendações a meu pai: “não a deixe ficar sem comer”, “nem dormir tarde”, “não a deixe sozinha”. E também pediu para que eu cuidasse do meu pai.

Foi conosco, “Miro” que guiaria o carro, e “Tiana” que iria comigo no banco detrás, ambos eram meus irmãos mais velhos, filhos do primeiro casamento do meu pai.

A bordo de um Del Rei cinza, saímos da Fazenda Flor da Barra no interior da Bahia, com destino à capital de Minas Gerais, Belo Horizonte.

Meus olhos não desgrudavam da janela do carro, eu queria ver tudo, absorver tudo. Ver as cidades ficando distantes, distantes, pequenininhas, pequenininhas, até desaparecerem e a imagem ser substituída pela imensidão verde dos pastos e plantações.

Ao longe eu via rios, montanhas e pedras enormes. Desejei que minha mãe e meus irmãos também estivessem ali para verem tantas coisas bonitas, tantos lugares e pessoas, ou de ter uma forma de registrar tudo e mostrar a eles quando voltasse, mas não tinha. Aquelas paisagens, sensações e sentimentos, não poderiam ser guardados em nenhum outro lugar, além da minha memória.

Estava tão entretida observando a paisagem que mal ouvi a voz do meu pai dizendo que logo passaríamos pela cidade em que ele nasceu. Quando mencionou o nome, Almenara, minha curiosidade despertou, pois ele sempre falava dessa cidade.

Acabamos passando por Almenara à noite e não pude vê-la. Fiquei muito decepcionada, mas hoje penso que foi melhor assim, porque conservo a imagem da Almenara de sua infância, dos seus primeiros sonhos e descobertas.

Miro nos disse que pararíamos na próxima cidade, Teófilo Otoni, para dormirmos e podermos descansar um pouco para continuar a viagem no dia seguinte.

Estávamos já na metade do caminho para se chegar a Belo Horizonte. Por um lado, queria chegar logo a nosso destino, por outro, queria que aquela viagem não acabasse nunca, para continuar a ver e me encantar com coisas novas, para ouvir as histórias do meu pai que ele nunca contara antes.

Mas chegamos. Era noite e havia tantas luzes coloridas, prédios enormes! ... O Del Rei se perdeu em meio a uma vastidão de outros carros.

Na recepção do hotel a proprietária ficou surpresa com o fato de eu ser branca e meu pai negro. Nunca havia me ocorrido que houvesse alguma importância em se ter cores diferentes. Meu pai percebendo o espanto no rosto da mulher explicou:

– Ela se parece com a mãe, que é branca.

Nossos quartos ficavam nos últimos andares. Eu dividiria um quarto com Tiana e meu pai outro com Miro.

Pela manhã, quando descemos para tomar o café, meu pai disse que eu ficaria no hotel enquanto ele e meus irmãos sairiam para resolver algumas coisas.

Eu não vi problema algum, pois havia gostado do hotel. Antes de saírem me pediram para não sair do quarto. Ao que também obedeci prontamente.

Mais tarde veio a camareira para limpá-lo. Era uma moça muito simpática, e conversamos durante todo o tempo em que ficou no quarto.

Já era quase meio dia e não haviam retornado. Ouvi então uma batida na porta e abri esperançosa de que fossem eles. Era a camareira novamente, dessa vez, veio me perguntar se eu estava com fome, pois me trouxe um lanche e explicou que no hotel não serviam almoço. Eu aceitei e agradeci, comendo tudo num instante.

Logo depois chegaram e ouvi meu irmão comentar com meu pai que a cirurgia seria no dia seguinte. Não entendi bem, será de que cirurgia falavam?

– Pai, quem vai fazer uma cirurgia? Perguntei-lhe.

– Sou eu filha, foi por isso que viemos para essa cidade, estou doente e preciso fazer uma cirurgia para ficar bom.

Só então compreendi que aquela não era uma viagem de férias.

De repente, fragmentos de conversas, de momentos dispersos no tempo, surgiram com nitidez em minha memória. E uma palavra que eu não conhecia ecoava como se viesse de um sonho antigo, que eu quisera esquecer: metástase.

O pedido da minha mãe, para que eu cuidasse do meu pai ganhou outro significado. E nos dias em que passamos em Belo Horizonte, não voltei a ficar no hotel, o acompanhei no dia da cirurgia e durante todo o período de internação até o dia em que teve alta e o médico disse que poderíamos voltar para a Bahia.

Mas ainda não queria que aquela viagem terminasse e fiz um pedido a meu pai.

– Pai, eu queria ver o mar.

– Mas minha filha, não existe mar em Minas Gerais e a fazenda fica perto do litoral – explicou-me.

– Mas nunca vi o mar e queria vê-lo com você.

Meu pai conversou com meus irmãos e concordaram em estender a viagem.

No dia seguinte deixamos Belo Horizonte. Mais uma vez, meu coração batia como que enfeitiçado, cheio de uma alegria grande.

Uma brisa suave tocava meu rosto através da janela e um azul que beijava o céu transformava todo meu olhar em infinito. Tudo era mar. Imensidão de água, cheiros e cores.

Descemos do carro e num instante que tinha ares de eternidade, fui abraçada pelo vento e acariciada pela areia fina de Copacabana.

O mar era tudo. Toda beleza condensada em azul, mundo entrando pelos olhos. Tudo o que hoje eu tenho saudade.

O meu pai olhava para um ponto ao longe, eu segui o seu olhar e também vi, era o Cristo Redentor de braços abertos sobre o Rio de Janeiro, protegendo e abençoando a cidade maravilhosa. Era uma esperança de que tudo daria certo.

Ficamos apenas um dia no Rio de Janeiro e seguimos para São Paulo, onde meu avô estava já há alguns meses também se tratando de um câncer.

São Paulo era multidão, de carros, de pessoas, de sons. Era uma cidade em tempo gerúndio, onde tudo era movimento.

Ficamos alguns dias e meu avô ficou feliz com nossa visita.

Sem poder mais postergar a viagem, retornamos à Bahia.

Meu pai não pode voltar para a fazenda, porque ainda precisava de cuidados médicos, eu também fiquei na cidade. Foram dias de muitas histórias e risadas. E dores constantes e uma palavra que voltava não mais como fragmento de um sonho, mas parte integrante da realidade. Metástase.

Fomos ao médico e o ouvi dizer a meu pai, que ele já podia retornar à fazenda. Por muito tempo, aquilo foi tudo o que eu mais quis ouvir, que voltaríamos para casa, mas voltar significava agora que já não havia caminhos possíveis.

Naquele mesmo dia, meu pai pediu a um amigo para que me levasse pra casa, mas ele não iria conosco.

Levou-me a uma loja no centro da cidade, comprou uma boneca para mim e outra para minha irmã, me deu a bênção e colocou-me dentro do carro.

Eu acenei através da janela, mas ele já não via.

Por muito tempo, toda a viagem ficou encoberta num ponto distante da minha memória. Só a lembrança desse aceno através da janela permaneceu em mim. E de que não gostava de olhar o mar.

Mas lendo um texto de um amigo chamado “As memórias que guardo do meu pai”, memórias doces, de momentos de cumplicidade e companheirismo, de repente, toda a névoa se esvaneceu e minhas próprias memórias se fizeram nítidas. E como eram belas! Encontrei rios, serras, pedras, estradas com curvas e retas que levavam a lugares surpreendentes e no final da viagem, o mar. E meu pai, me contando histórias, voltando pra casa, cheio de uma alegria grande, como a minha.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Senha 24

Olhares reticentes, saudação sem respostas, silêncio.

Numa sala da ETEC de Santo Amaro, retirei minha senha e sentei-me para aguardar junto a outros 23 professores, a chamada para fazer a inscrição no Processo Seletivo da Instituição. 

Pensava no quanto minha espera seria longa, ao olhar em volta e não encontrar nenhum rosto conhecido ou que demonstrasse qualquer simpatia. 

De repente, vi entrar uma mulher elegantemente vestida, com olhar altivo, mas cheio de ternura. Retirou sua senha, sentou-se ao meu lado e para minha surpresa, quebrou o silêncio opressivo dizendo:

– Deniz! 

Olhei-a com atenção e reconheci o rosto cheio de simpatia, era uma colega da Faculdade que não via a cerca de seis anos.

Abraçamo-nos, felizes pelo reencontro inesperado.

Ela quis saber por onde andei, se havia terminado o mestrado. Respondi que andei por muitos lugares, trabalhei em outros tantos e só agora voltava a estudar. E que tinha inventado de contar estórias num blog.

Eu perguntei sobre ela. Contou-me que se casou.

A ternura desapareceu do seu olhar e voltou a perguntar sobre mim:

– Me fale mais sobre o blog, que tipo de histórias você conta?

– São histórias que vivi, ou de encontros com pessoas que me ensinaram muita coisa com suas próprias histórias – respondi.

Ela então fez um pedido:

– Gostaria de contar uma história para que você a reconte em seu blog.

– Que história? – questionei.

– É sobre a violência contra a mulher. Durante o meu casamento fui agredida muitas vezes, mas meu marido, sempre se desculpava depois, me beijava e tudo ficava perfeito de novo.

– Ele ficava violento por qualquer motivo, principalmente, se eu discordasse de alguma coisa, como quando decidiu que precisávamos comprar um carro. Eu disse que era melhor dar entrada num apartamento e sair do aluguel, mas ele não ouviu, e levei a primeira surra. Compramos o carro, ele ficou feliz. Mas não demorou a voltar a me agredir. Passei a ter medo, um medo que me paralisava. Por isso, não registrava nenhum boletim de ocorrência.

– Até que um dia, ele me segurou pelo pescoço e tentou estrangular-me, consegui gritar por socorro e os vizinhos me salvaram. Naquele dia percebi que ele nunca iria mudar, que na verdade, quem teria que mudar seria eu e decidi pedir o divórcio. Novamente disse que estava arrependido, que nunca mais tocaria em mim se eu voltasse, mas já não tinha medo e segui adiante com o divórcio, ele disse que só aceitava se eu abrisse mão do carro que compramos juntos.

– Mesmo sabendo que não era justo, pois havia trabalhado muito para pagar aquele carro, ainda assim aceitei, porque naquele momento nada era mais valioso que a minha liberdade.

– Ele ficou contente, acreditava que mais uma vez, havia me intimidado, mas o denunciei à polícia. Hoje sou livre. 

– Fiz o intercâmbio que sempre quis, para aperfeiçoar o Espanhol, retornei à minha cidade em Minas para rever os amigos, dos quais me afastei após o casamento e, acabei reencontrando com o meu primeiro namorado. Resultado. Nos casamos, e com ele descobri que é possível ser feliz com outra pessoa, desde que a respeite, confie em você e a incentive a alcançar os seus sonhos. É por causa do incentivo do meu marido que vim aqui hoje fazer a inscrição para a vaga de Professora de Espanhol.

– Deniz, quis partilhar esta história, para alertar às mulheres que são agredidas, que têm medo, que passam por qualquer tipo de violência, que apesar de ser muito difícil quebrar o silêncio, essa é a única forma de sobreviver. A gente estuda, trabalha, tem amigos, tem família, mas de repente, deixa de fazer parte de tudo isso e vive em função de um opressor. Acha que nunca vai acontecer conosco, o que é um erro. 

– A violência doméstica não é praticada apenas contra mulheres que não tiveram acesso à informação, ao estudo, nada nos prepara para essa agressão que não é apenas física. O começo nunca é um tapa, um puxão de cabelo, um chute. O começo é aquele sonho que acalenta e o seu companheiro diz que é besteira, e você desiste, porque acaba dando razão à ele. É aquele emprego que almejava e conseguiu, mas você desiste, porque o seu companheiro diz que gostaria de tê-la sempre ao seu lado em casa. É aquele encontro com os amigos que você desiste de ir, porque o seu companheiro diz que essas amizades não são boas para você. 

– Quando vem o primeiro tapa, você já não tem mais sonhos, nem objetivos, nem amigos, nem voz. 

– Segurei suas mãos entre as minhas e a agradeci pela confiança em contar-me sua história, pelos sorrisos que fizeram das horas, segundos, pela coragem de seguir adiante com aquela ternura que só quem já sofreu, já chorou, já caiu, pode trazer no olhar.

Senha 24!

– Minha vez – sorri.

– Boa sorte amiga! – desejou-me, também sorrindo.

– Pra nós minha querida, pra nós.

sábado, 2 de março de 2013

Era uma vez uma casa...

– Você não deveria ir a esse jogo.

– Porque não pequenina?

– Por que vai acontecer uma coisa ruim com você lá.

Aos quatro anos de idade eu conversava com Astrogildo. Não o conhecia da escola, nem da rua em que morávamos, o conhecia das visitas que fazia à minha família no povoado de São João do Sul, interior da Bahia.

Astrogildo era o melhor amigo do meu pai. Lembro-me de vê-los jogarem sinuca por horas, num desafio que nunca terminava. Ele era, sobretudo, um andarilho. E, embora tivesse uma casa no povoado, sua verdadeira casa era o mundo.

Cada vez que voltava, trazia-me um presente, punha-me no colo e contava histórias sobre as terras distantes por onde andou, as pessoas com quem cruzou e as aventuras que viveu. Eu o escutava com os olhos brilhantes de curiosidade. Não imaginava o mundo para além do povoado. Nunca tinha saído de lá, quase ninguém tinha, nem mesmo as pessoas grandes.

No povoado, todos o admiravam, porque conhecia lugares onde ninguém mais tinha ido e falava línguas diferentes da nossa. Era um homem de cultura, meu pai dizia. Tinha conhecimento e generosidade em transmiti-lo. Generosidade talvez fosse a melhor palavra para defini-lo, não raro, ao chegar ao povoado, fazia grandes feiras e doava aos moradores mais pobres. Aonde ele chegava havia fartura e ninguém sentia fome.

Mas naquele dia, havia algo diferente, eu não queria ouvir suas histórias, queria que ouvisse a minha, não sei por que disse aquelas palavras a ele, nunca soube. Ele também nunca as escutou.

Astrogildo foi ao jogo, o seu time perdeu. Houve uma briga, ele se envolveu, feriu e foi ferido. Deixou o povoado, foragido, anti-herói. E o povo esqueceu os anos de generosidade.

Alguns meses se passaram e um dia ele retornou. Não me trouxe um presente, como das outras vezes, mas me contou uma história. A história de um homem que perdeu sua família, mas encontrara outra. Que era sábio, mas não soubera escutar, que embora tivesse ganhado muito dinheiro, só tinha um bem, uma casa. Compreendi então que falava de si mesmo. Depois, retirou um papel de uma maleta de couro e entregou-me, dizendo:

– Esse é o meu presente para você. Era a escritura da casa.

E novamente foi embora.

Quando retornou ao povoado, eu estava com oito anos, havia crescido bastante, a maior mudança, contudo, não foi em minha altura, ou em meus cabelos que aos poucos perdiam os reflexos dourados, para ganharem um tom de castanho, a maior mudança, foi no motivo da sua volta. Ele voltara para o enterro do seu melhor amigo, o meu pai, que lutara contra um câncer nos anos em que estivera ausente, e perdera.

Foi Astrogildo quem nos abraçou a todos e chorou conosco. Meu pai era seu porto seguro, sua direção, seu irmão.

O desafio das partidas de sinuca havia terminado. Fim de um jogo sem vencedores.

Com a morte do meu pai, nossa vida mudou. Morávamos numa fazenda, com um grande rio e uma lagoa, onde as garças-brancas nos visitavam em novembro, tínhamos uma casa com varanda, de onde olhávamos os pastos e os bichos, tínhamos uma família e amigos. Perdemos tudo, primeiro a fazenda, depois os outros bens e com eles os amigos.

Quiseram nos dividir, minha mãe não deixou, disse que tinha força e coragem para trabalhar e criar os filhos.

Não tínhamos mais nada, só uns aos outros e a casa que Astrogildo me dera.

Mas meu pai havia permitido que um amigo vereador usasse a garagem da casa, enquanto morávamos na fazenda. Após a sua morte, o amigo quis nos tomar a casa, alegando que meu pai lhe dera. Ele tinha influência política, mas minha mãe tinha algo mais forte, coragem e conhecimento de um detalhe que ele não sabia. Que a casa não era do meu pai, era minha. Mas ainda assim, o vereador insistiu que a casa era dele. O caso foi parar num Tribunal e, uma vez mais, ganhei a casa.

Foi nela que cresci, que minha mãe montou uma pequena mercearia onde antes fora a garagem e trabalhou para nos criar. 

Aos 14 anos comecei a lecionar para uma turminha de pré-escolar. Com esse trabalho pude ajudar minha mãe com as despesas de casa e soube o que gostaria de ser para a vida toda – professora. Descobri no ensino além de um meio de passar e adquirir conhecimentos, um meio de levar esperança de um futuro melhor a meus alunos, minha mãe e meus irmãos.

Quando fiz 16 anos, Astrogildo retornou ao povoado, havia se casado com Miriam, uma morena bonita e muito simpática.

Foi nessa época que soube por que ele me dera a casa.

– Deniz, nem todas as histórias que vivi, foram bonitas como as contei a você, já fiz muitas coisas das quais não me orgulho. Mas sempre que voltava, encontrava em sua casa uma família. Vocês me salvaram de muitas maneiras, principalmente de mim mesmo. Dei a casa a você, para que não importa aonde vá, o que viva, ter um lugar que é seu, para onde sempre poderá voltar.

Um dia, chegou a minha vez de deixar o povoado, de conhecer terras distantes e viver outras histórias.

Tornei-me professora voluntária do Programa Alfabetização Solidária.

Quando voltei ao povoado, reencontrei Astrogildo. Seus cabelos mudaram, já não eram negros, nem sua pele firme, os fios tingiram-se de branco e na pele havia marcas do tempo. A mulher o abandonara, ele não tinha para quem voltar, nem para onde ir, e nos procurou.

Chamei Astrogildo e, segurando suas mãos enrugadas entre as minhas, coloquei sobre elas as chaves da casa, dizendo-lhe: – É sua novamente. Você terá sempre para onde voltar e terá sempre por quem voltar. Somos sua família.

Ele ficou alguns anos, e passou a ser eu quem voltava e lhe contava histórias das terras por onde tinha andado, mas apenas seu corpo envelhecera, sua alma continuara andarilha e, mais uma vez, deixou o povoado.

Foi a última vez que o vi.

Ambos nos tornamos andarilhos.

Em São Paulo, entrei para a Faculdade, contudo, não tinha dinheiro para pagá-la. E, pela primeira vez, pensei em vender minha casa, mas consegui uma bolsa de estudos para o curso de Letras na PUC-SP e não precisei vendê-la.

Com os anos, foram muitas as dificuldades pelas quais passei, mas não voltei a pensar em vender minha casa, porque ela é mais preciosa que o dinheiro que eu poderia ganhar com sua venda. É o meu lugar no mundo, para onde sempre poderei voltar.

Dedico esta história a meu amigo Astrogildo, que está por aí, mundo afora, colhendo histórias para contar-me quando voltar.

"Ele era um andarilho.
Ao passar pela Aldeia ele sempre me pareceu
a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida".

Manoel de Barros



Povoado de São João do Sul - Bahia
                                                      

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Vida e Poesia

Vivi com poesia toda a minha vida, sempre olhando as coisas, as pessoas sob um prisma diferente e, nesse meu modo de ver o mundo, um livro era capaz de oferecer escolhas a quem o lesse, que poderia ser o que quisesse no virar de cada página, a educação não seria privilégio de alguns, mas um direito de todos, quer morassem na cidade, ou numa fazenda no interior da Bahia, numa casa de palafita suspensa sobre um rio no Amazonas, ou num lugar destruído pela guerra, como o Timor Leste.

Um dia, numa aula para minha turma de jovens e adultos do Programa Alfabetização Solidária, uma aluna me fez uma pergunta inusitada:

– Professora, eu posso te dar um abraço?

– Sim, é claro que pode, respondi. Mas o que fiz para merecer um gesto tão carinhoso? Nem é meu aniversário, brinquei.

– Ela me abraçou forte e em lugar de responder, contou para mim e para a classe um fato ocorrido naquele dia.

– Hoje fui ao banco, como o fiz durante vários anos da minha vida, para receber o salário pelo trabalho de merendeira da escola, e quando o moço pediu para eu sujar o dedo de tinta e assinar o contracheque, eu pedi uma caneta. Ele me olhou assustado, assim como as pessoas que estavam comigo na fila. Eu também estava assustada, foi a primeira vez que assinei meu nome completo professora, que me senti gente igual a todo mundo.

– O moço observava a caneta em minha mão como se fosse um objeto desconhecido, enquanto via formar no papel, a cada nova letra escrita, o meu nome. Para ele, a caneta não era um objeto desconhecido, mas para mim, até pouco tempo, de fato era. Até pouco tempo, até mesmo o meu nome me era desconhecido. Só naquele momento me dei conta de que sabia ler, lia devagar, mas lia, de verdade.

Minha aluna se chamava Eldi, tinha 50 anos, fazia parte da escola há muito tempo, mas era a primeira vez que fazia parte da escola como estudante.

Foi um dos abraços mais sinceros que já recebi.

Eldi morreu há alguns anos em Salvador. Segundo seus filhos, aprender a ler, foi uma das maiores alegrias de sua vida.

Sem poesia, histórias como essa jamais seriam possíveis.