segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Vida e Poesia

Vivi com poesia toda a minha vida, sempre olhando as coisas, as pessoas sob um prisma diferente e, nesse meu modo de ver o mundo, um livro era capaz de oferecer escolhas a quem o lesse, que poderia ser o que quisesse no virar de cada página, a educação não seria privilégio de alguns, mas um direito de todos, quer morassem na cidade, ou numa fazenda no interior da Bahia, numa casa de palafita suspensa sobre um rio no Amazonas, ou num lugar destruído pela guerra, como o Timor Leste.

Um dia, numa aula para minha turma de jovens e adultos do Programa Alfabetização Solidária, uma aluna me fez uma pergunta inusitada:

– Professora, eu posso te dar um abraço?

– Sim, é claro que pode, respondi. Mas o que fiz para merecer um gesto tão carinhoso? Nem é meu aniversário, brinquei.

– Ela me abraçou forte e em lugar de responder, contou para mim e para a classe um fato ocorrido naquele dia.

– Hoje fui ao banco, como o fiz durante vários anos da minha vida, para receber o salário pelo trabalho de merendeira da escola, e quando o moço pediu para eu sujar o dedo de tinta e assinar o contracheque, eu pedi uma caneta. Ele me olhou assustado, assim como as pessoas que estavam comigo na fila. Eu também estava assustada, foi a primeira vez que assinei meu nome completo professora, que me senti gente igual a todo mundo.

– O moço observava a caneta em minha mão como se fosse um objeto desconhecido, enquanto via formar no papel, a cada nova letra escrita, o meu nome. Para ele, a caneta não era um objeto desconhecido, mas para mim, até pouco tempo, de fato era. Até pouco tempo, até mesmo o meu nome me era desconhecido. Só naquele momento me dei conta de que sabia ler, lia devagar, mas lia, de verdade.

Minha aluna se chamava Eldi, tinha 50 anos, fazia parte da escola há muito tempo, mas era a primeira vez que fazia parte da escola como estudante.

Foi um dos abraços mais sinceros que já recebi.

Eldi morreu há alguns anos em Salvador. Segundo seus filhos, aprender a ler, foi uma das maiores alegrias de sua vida.

Sem poesia, histórias como essa jamais seriam possíveis.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Chuvas de Novembro

"Eram da garça-branca-grande, 
a exagerada cândida, noiva. 
Apresentavam-se quando nem se pensava nelas, 
não esperadas. 
Por súbito: somente é assim que as garças se suscitam. 
Depois, então, cada vez, a gente gostava delas".

Guimarães Rosa 

Novembro era o mês da cheia no extremo sul da Bahia.

Nesse período, os pastos renovavam-se e uma paisagem verde e florida era vista por toda a extensão de terras. Os rios enchiam-se com novas águas e alargavam-se, tomando forma de mar, levando em correntezas de águas escuras e turbulentas tocos de árvores, folhas secas e tudo o mais que se interpunha em seu caminho.

Apareciam somente nesta época do ano, as piabas bobós, por isso, víamos em diversos pontos do rio, redes de tresmalhos armadas para aprisioná-las por entre as cerdas de náilon.

Quando retiradas da água e expostas à luz do dia, suas escamas prateadas provocavam um bonito espetáculo aos olhos dos pescadores.

A diversidade e quantidade de peixes nos rios, córregos e lagoas, atraíam uma ilustre visitante, uma figura quase mítica na região, a garça-branca que, em sua plumagem alva, paradoxalmente, coloria o pasto verdejante.

Num passado distante, fora essa ave quem inspirara os primeiros habitantes a darem o nome de Guaratinga à região, nome que em tupi-guarani, significava garça-branca.

A lagoa de vegetação abundante que ficava a alguns metros de casa, estava povoada por um grande número delas. Da varanda, ficávamos minutos sem fim observando o mágico bater de suas asas, a graça e astúcia com que sorrateiramente desciam sobre a água e, num rápido movimento, aprisionavam um peixe por entre o bico, voavam até a margem e o devoram em instantes.

Meu pai dizia que um dia chamaria um cinegrafista para aprisionar em imagem aquele revoar, desse modo, poderíamos vê-las e admirá-las não apenas em novembro, mas durante o ano inteiro.

Também chegavam lontras, capivaras e jacarés. As lontras emergiam num ponto do rio para submergirem logo adiante, como a brincar conosco de pique-esconde. Já as capivaras, ariscas e desconfiadas, ao menor sinal nosso, embrenhavam-se no mato alto, deixando para trás um odor forte e característico. Os jacarés, por sua vez, faziam breves aparições e voltavam a se camuflar sob a lama da lagoa.

Novembro era o mês em que a natureza expressava sua força e fazia tudo reviver. Era o mês da vida, para a terra, para as plantas, para os bichos e para os homens.

A fazenda Flor da Barra dividia-se em duas partes: uma parte era de montes e colinas, a outra, de pastos e plantações que, nesta época, ficava sob as águas. Por isso, era preciso resgatar os animais que não conseguiram cruzar o rio e chegar à parte alta antes da enchente.

Entre os animais que ficaram ilhados, estavam uma égua e seu potrinho recém-nascido, que eram o tesouro da fazenda, tanto por serem de raça, quanto por serem animais jovens, fortes e a promessa de uma longa prole.

Meu irmão Ronaldo e meu primo Aurélio, ambos exímios nadadores, ofereceram-se para nadar até o outro lado do rio e trazê-los a um ponto seguro da fazenda.

Como não parecia haver nenhuma outra possibilidade para resgatá-los, senão atravessando o rio, os vaqueiros concordaram com o oferecimento.

Ronaldo e Aurélio saltaram no rio, procurando vencer a braçadas a violenta correnteza, num esforço supremo para não serem levados rio abaixo.

Foi com um misto de animação e alívio que da margem do rio, vimos os dois chegarem ao outro lado.
A égua e o potrinho pastavam próximos da margem, desse modo, foi fácil fazê-los mergulharem no rio.

Mesmo de onde estávamos era possível ouvir o barulho quando ambos entraram na água.

A partir desse momento, uma cena inimaginável desenrolou-se frente aos espectadores daquela empreitada, que minutos antes parecera simples e, que de repente, se afigurava aterradora.

A égua estava nadando com desenvoltura e já havia chegado ao meio do rio, quando olhando ao seu redor notou que o filhote não estava ao seu lado. A correnteza o havia afastado e estava mais abaixo, num ponto em que as águas formavam um redemoinho. Ele se debatia, tentando sair da turbulência das águas, que o tragava impiedosamente.

A égua se voltou para o filhote e desceu em direção ao redemoinho. Sua intenção era clara para todos – tentaria salvá-lo. Conseguiu chegar até ele e segurá-lo pela orelha, procurando com esse gesto, puxá-lo para cima, para longe do redemoinho. Debateu-se, nadou, lutou, mas o grande esforço despendido nesta tarefa a extenuaram.

Aos poucos, foi parando de lutar, até que a orelha do potrinho soltou-se de sua boca. Mãe e filho afundaram nas águas profundas, escuras e fatais do Rio do Peixe. De repente, emergiram e mais uma vez pudemos vê-los, mas pareciam ter voltado apenas para um último suspiro de vida, voltaram a afundar e não mais emergiram, afogaram-se.

Um sentimento de tristeza e impotência tomou conta de todos, ninguém conseguia crer em tamanha ironia, uma vez que, muitos animais já velhos, atravessaram o rio sem problemas, enquanto que aqueles, jovens e saudáveis, sucumbiram à força das águas.

A natureza, como a querer nos comprovar que a cena fora real, os trouxe de volta num ponto mais abaixo do rio, deformados pela quantidade de água ingerida, depois flutuando lado a lado, mãe e filho foram levados pela correnteza, numa viagem sem volta pela imensidão do rio.

Rio adentro, rio afora, rio abaixo, rio.

Passaram-se os meses e, num dia ensolarado de maio, nosso pai morreu.

Um folheiro fazia sombra à sepultura no alto do morro e, logo abaixo, estava a lagoa, na qual dali a seis meses, as garças-brancas retornariam, seria novembro, a vida ressurgiria, para a terra, para as plantas, para os bichos e para os homens.




Ilustração de Rodrigo Chica para o conto Chuvas de Novembro

Os Gatos

Sentada num banco próximo a um canteiro de margaridas, eu esperava.

Enquanto os minutos passavam, observei as pessoas que entravam e saíam apressadas e imaginei que não sorriam por falta de tempo ou porque não viam os gatos. Dezenas deles, brancos, pretos, malhados, de olhos claros, castanhos, negros, gatos pequenos e grandes, dóceis e ariscos.

Um deles encostou-se em meus pés pedindo carinho e logo a seguir ronronou de satisfação com o afago recebido. Pensei em como eram belos em seu jeito despreocupado e preguiçoso de andar de um canto a outro do enorme jardim.

Era meu aniversário. Sempre imaginamos algo especial para fazer nesse dia, qual presente ganharemos. Nosso aniversário também representa o que vivemos e o que ainda vamos viver. E sentada naquele banco olhando os gatos, pensei como seria viver sem essa perspectiva de continuidade e compreendi que não eram os gatos que as pessoas não viam, era o futuro.

Meu primo tinha displasia de medula óssea e estava internado na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo em tratamento.

Temos tanta pressa. Pressa em crescer, em entrar na faculdade, em terminá-la e conseguir um bom trabalho, em nos apaixonar, casar, ter filhos, corremos até numa visita a um parente no hospital.

Por que corremos tanto? Para sobrar mais tempo? Mais tempo para quê?

A enfermeira fez sinal para que eu entrasse.

Meu primo me olhou e parecia pedir que lhe desse boas notícias.

Enquanto ele estava internado, a violência aumentou na cidade, as chuvas deixaram algumas pessoas desabrigadas, ainda era alto o índice de desemprego, e alguns times caíram para a segunda divisão, eu poderia lhe falar sobre tudo isso, mas escolhi falar-lhe sobre a quantidade de gatos lá fora, de vida, à sua espera. Não nas coisas que costumamos achar importantes quando temos todo o tempo do mundo, como um emprego melhor, um salário maior, mas nos detalhes, que não levam mais que alguns segundos para serem vistos, percebidos, vividos, como a beleza de um canteiro de margaridas que teima em florescer mesmo dentro de um hospital ou no pedido silencioso de carinho feito por de um gato.

Meu primo sorria quando deixei o hospital. Foi o meu melhor presente.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Olhos Tristes

Chegou mais cedo que de costume, encostou-se ao balcão e pediu uma dose de atenção. Servi um sorriso cordial. Não o satisfez, queria algo mais forte, uma bebida que descesse ardente pela garganta ressequida e tirasse da língua o gosto amargo da vida.

Tinha olhos tristes, que expressavam uma angústia pouco comum em alguém ainda tão jovem. 

Após sorver de um único gole o conhaque, ficou em absoluto silêncio. 

Esperei que falasse sobre o tempo, a falta de trabalho, o número crescente de assassinatos, sobre qualquer coisa que indicasse interesse pelo mundo e as pessoas à sua volta. 

O silêncio foi quebrado por uma pergunta inesperada: 

– Você já leu Capitães da Areia? 

Antes que eu pudesse assimilar a pergunta e formular uma resposta, seguiu falando sobre o livro e a história do bando de meninos liderados por Pedro Bala, meninos quase crianças, quase adultos, quase éticos, quase bandidos, quase. 

Disse que o seu personagem preferido era o menino conhecido na trama como Professor, por que lia, desenhava e tinha honra. Compreendi, então, que falava mais para si mesmo, do que para mim, comparava sua vida à de personagens atormentados, complexos, misturava em seu relato, ficção e realidade. 

Pediu para usar o banheiro. Indiquei a direção. Voltou minutos depois passando, repetidamente, as mãos sobre o nariz, mas apesar do esforço para limpá-lo, ainda eram visíveis os restos de pó. 

Aproximou-se de mim, os olhos agora eram vívidos e ainda mais atormentados, contavam sua história.

Morava do outro lado da rua, num quarto de aluguel em companhia de um violão sem cordas, um colchão desgastado pelo tempo e alguns exemplares de Jorge Amado, quase que totalmente devorados pelas traças. 

Na parede, o mofo dividia espaço com um espelho quebrado, no qual ao se olhar, via um rosto fragmentado, incompleto, mais velho do que deveria ser. 

Ao canto, uma mesa de pernas vacilantes, escorada por tijolos, servia de suporte às garrafas vazias de cerveja e compunha o restante da escassa mobília. 

Podia criar paisagens numa tela ou num pedaço rasgado de papel, esculpir num tronco disforme, figuras surpreendentes, compor e tocar belas canções, falar sobre os mais diversos assuntos, conquistar muitas mulheres, brincar com crianças, conversar com idosos. 

Poderia ser um artista, professor. Poderia ser muitas coisas, mas escolhera não ser nada, nada que esperavam que fosse. 

Era um capitão da areia. 

A droga levou seu dinheiro, seu amor próprio, sua família, levou tudo o que era, ou pensou em ser. 

A única coisa que lhe restou foram os olhos tristes.

A Limusine Branca

Por entre as grades do portão de ferro, ela olhava a rua silenciosa, com seus casarões antigos e árvores estáticas.

O tempo era feito de esperas.

Ao longe, uma Limusine branca coloria o espaço cinza de um dia sem sol.

Durante segundos infinitos, se permitiu contemplar a imagem e tecer ideias sobre quem a Limusine estaria levando. Gostava de pensar que era um artista ou uma noiva, a caminho de destinos surpreendentes.

Olhou uma vez mais, a claridade se fora, viu o rodo e o pano de chão, a vassoura e o pó, viu a si mesma, entre a realidade e o sonho.

Trabalhava numa casa no Butantã. Do salário que recebia, tirava o suficiente para as despesas de casa e o sustento dos filhos pequenos.

A pretexto de uma proposta irrecusável de trabalho em outro Estado, o marido foi embora e nunca mais voltou. 

Mas ela não reclamava da vida, tinha saúde, fé e muita coragem, tinha, sobretudo, por quem lutar, por quem ser forte.

Por um momento um sorriso iluminou o seu rosto ao lembrar-se do menino de olhos grandes e curiosos e da menina de cabelos cacheados. Todos os dias, lhes contava histórias sobre a Limusine branca, misteriosa, que surgia quando nem se pensava nela, e pelo espaço de tempo em que cruzava a rua, tornava o seu dia mais bonito, depois desaparecia entre casas, carros e multidão.

À noite, ao contar mais uma aventura aos filhos, eles quiseram saber se um dia também poderiam vê-la passar. Ela prometeu que sim, que os levaria ao lugar de onde elas surgiam. Um lugar muito grande e bonito.

As crianças já dormiam quando pensou em lhes dizer que era só uma história.

No outro dia, saiu mais cedo, decidida a desvendar o mistério. Caminhou até o final da rua em que trabalhava, viu apenas os casarões antigos de sempre e, nenhum deles parecia abrigar, atrás dos muros altos de pedras e imponentes portões, as Limusines. Perguntou aos seguranças e, a quem mais viu passar pela rua, se sabiam algo a respeito, após várias respostas negativas, finalmente descobrira de onde vinham. Porém, já estava tarde, precisava trabalhar.

Passou o dia numa doce expectativa de quem conheceria algo precioso. Terminou todo o serviço e foi embora, não para casa, ainda, mas para o destino a tanto esperado.

Após andar por alguns minutos, chegou a uma imensa construção, cercada por um jardim de flores coloridas e um tapete verde de gramas. Homens vestidos sobriamente protegiam a porta. Aproximou-se e perguntou se poderia entrar. Relatou o motivo de estar ali. Os homens a olharam, viram a roupa simples, os sapatos gastos e julgaram que não tinha a aparência de quem poderia alugar uma Limusine. E não a deixaram entrar.

Enquanto tentava argumentar, um carro atravessou o portão. Com surpresa, observou a porta traseira se abrir, um senhor de barbas brancas descer e vir a seu encontro. Quis saber o que se passava. Os homens asseguraram que não era nada, apenas uma mulher querendo entrar onde não devia. 

O senhor voltou a perguntar, deixando claro que gostaria de saber a sua versão do que acontecera. Ela contou-lhe do seu sonho e dos filhos de conhecer uma Limusine. Ele mostrou-se feliz com sua resposta. E começou a falar num tom que também poderia ser ouvido pelos homens, sobre um jovem motorista, com pouco dinheiro no bolso e um sonho grandioso, o de ter seu próprio carro. Não um carro comum, mas um carro que levasse as pessoas a destinos surpreendentes, com segurança, conforto e requinte. Não foi difícil perceber que falava de si mesmo, de um tempo em que ainda não era o dono de uma grande frota de Limusines.

Pediu-lhe que viesse no dia seguinte e trouxesse as crianças, ele mesmo lhes mostraria a Limusine branca e seria o motorista que as levaria para um passeio pelo Butantã. Ela o agradeceu e foi embora, ansiosa por contar aos filhos, que as Limusines vinham de um lugar que era feito de trabalho, dedicação e sonhos.

A Rosa

Rosa trazia os lábios sempre coloridos por um batom, a face iluminada pela aplicação de algumas camadas de blush e os cabelos presos com cuidado, com grampos nas laterais. Vestia-se com roupas simples e imaculadamente limpas e bem passadas.

Trabalhava o dia inteiro sob o sol inclemente da Bahia, era boia-fria.

Saía antes do sol nascer, num caminhão que a levava junto com outros jovens para a fazenda onde trabalhavam no corte de cana-de-açúcar e de onde só retornavam ao final da tarde.

Ganhava cinco reais por dia.

Rosa atravessava o dia desprovida de enfeites ou de algo que lembrasse, ainda que vagamente, sua condição de mulher.

Naquele campo de trabalho, era apenas mais uma entre tantos outros, homens e mulheres, sem rostos, sem identidade, sem sonhos, apenas mão de obra, disponível e barata.

Mas à noite, durante as aulas de alfabetização, ela se permitia ser mulher e, sobretudo, se permitia ter uma vida diferente – a de estudante.

– Professora, eu quero aprender a ler para um dia trabalhar em outra coisa, confidenciou-me numa aula.

Segurei suas mãos calejadas entre as minhas e respondi:

– Rosa, sua força, sua atitude em se por bonita para enfrentar a vida, em fazer das mãos calejadas que seguram enxadas e foices, mãos delicadas que seguram a caneta e traçam linhas, novas histórias, só se encontra em quem tem vocação para ser grande.

Ela sorriu. Um sorriso de carmim que tinha o peso das experiências vividas.

Eu também lhe sorri, feliz em ser professora de pessoas corajosas e com tanta vontade de ser.


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Um piano na escuridão

O que mais me comove em música
São estas notas soltas
- pobres notas únicas -
Que do teclado arranca o afinador de pianos.

Mário Quintana

Fazia Solidão.

Leituras inacabadas, poltronas vazias, livros espalhados sobre os balcões, caos displicente de palavras, vozes emudecidas, passos interrompidos, luzes apagadas, fim de jornada.

Em meio ao silêncio, profundo e absoluto, o som tênue, quase imperceptível de uma canção, ressoava distante no tempo e no espaço e preenchia com notas dissolutas de calmaria e êxtase, a escuridão.

Andei por entre as estantes, à procura de um caminho que levasse ao conhecimento da melodia, que não parecia vir de lugar algum e ao mesmo tempo estava em todos os lugares, da melodia que não era de se pegar, era de se sentir, “de estarrecer de todo a gente”, era mistério.

Cheguei a um corredor com duas portas. Uma delas levava à saída da Livraria e ao fim do meu idílio, a outra, ao auditório. Algumas pessoas cruzaram a primeira porta e foram embora. Tinham pressa e não ouviam a música.

Aproximei-me da segunda porta, que estava entreaberta, o ritmo agora era intenso, vibrante, as notas soltas se juntavam a outras e revelavam a origem da canção que eu procurava.

E foi o que não se podia prever.

No palco do auditório sem plateia, sem a luz de holofotes, sem aplausos, ele tocava o piano na escuridão, com a intimidade de um amante e a paixão com que falava de literatura.

A escuridão voltou a cobrir meus olhos, não pela ausência da luz, mas pela presença das lágrimas, diante da beleza daquele instante e do conhecimento de quem era o pianista.

Era o vendedor de poesia. Era um anônimo artista.

Ao final do dia, ele encontrara no auditório, um piano na escuridão. As teclas eram tão conhecidas suas quanto as letras. Permitiu-se tocá-las, senti-las e extrair delas a melodia, que permanece ressoando no tempo, em versos livres, notas soltas, encantamento que nos toma sem explicação.