sexta-feira, 11 de novembro de 2016

A bicicleta verde

Papai Noel,

Anda ausente desde os meus 7 anos quando lhe escrevi uma longa carta e a deixei na janela do meu quarto com o pedido de uma bicicleta. O sr. não apareceu, nem mandou a bicicleta. Mas superei e não guardo nenhuma mágoa do ocorrido. Foi melhor assim.

Um dia a bicicleta chegou, era verde, pequenina, uma beleza mesmo. Minha mãe que trouxe para nós.

Éramos cinco irmãos e tínhamos apenas aquela bicicleta, o que tornou cada passeio nela ainda mais especial.

Cada irmão tinha direito a uma volta pelo povoado em que morávamos, de modo que ao chegar a nossa vez, tentávamos fazer com que o passeio durasse para sempre, em voltas que contornavam toda a praça e o coreto, a igreja, os mercadinhos e o pátio da escola, era tanta emoção que mal cabia no peito.

Orgulhosos sorríamos para quem encontrássemos pelo caminho, alegria é isso, não ter tudo o que se quer, mas aquilo que se precisa. E não precisávamos de mais nada, além daquela volta na bicicleta verde para ser feliz.

Até que a volta terminava e tínhamos que esperar quatro irmãos viverem suas próprias aventuras até chegar a nossa vez de novo.

Aquelas voltas duravam o dia inteiro.

Naquele momento eu abria os olhos para enxergar com nitidez tudo adiante, os rios, as estradas cheias de curvas e retas, as pessoas. Hoje basta que os feche para ver surgir logo adiante os pastos e plantações, os rios e as pedras que contornavam todo o povoado, e a bicicleta verde em voltas sem fim pela imensidão que há diante do olhar de uma criança.

Ainda posso ouvir minha mãe nos chamando da varanda:

- Meninos venham para dentro, o dia já envelheceu!

É mãe o dia envelheceu, eu também, mas o que “em nós já foi menino não envelhecerá nunca”.




sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Maria

“Um livro nunca se encerra. Nunca tem fim. 
Não existe apenas uma única vez. 
Ele é a história do leitor. "
Alberto Manguel

No horário do meu almoço, costumo me sentar num banco em frente a um lago cheio de carpas coloridas, ou andar um pouco pelo campus, parando ora para ver os pavões, belos em sua plumagem majestosa, ora para observar os alunos jogarem xadrez, em partidas num enorme tabuleiro.

Hoje chovia quando saí e não pude ver as carpas. Mas vi algo que transformou o meu olhar em imensidão. Sentada num banco no meio de um pequeno bosque, em companhia somente dos livros e de alguns cadernos, uma senhora lia.

Alheia aos pingos de chuva, ao leve vento frio que soprava por entre as árvores, ao pequeno movimento de pessoas em volta, ela lia.

De repente seu olhar se ergueu e ela me sorriu, aproximei-me, pedi licença e lhe perguntei o que lia.

Ela convidou-me para sentar ao seu lado e com generosidade me contou que tinha muita dificuldade para estudar, pois ficara muitos anos longe da escola, e só agora após ter criado os filhos, conseguiu tirar um tempo para si mesma e seus sonhos.

Estava com 65 anos, cursava a Faculdade de Geografia no período da manhã e a Faculdade de Letras no período da tarde. No intervalo entre um curso e outro, lia, buscava conhecer um pouco mais sobre o universo das palavras, sobre as pessoas, os lugares, sobre o que acontecia no mundo dentro e fora da gente.

Enquanto me contava um pouco da sua história, retirou da bolsa, de tecido gasto e marcas do tempo, um pacote de bolacha de água e sal e uma garrafa d’água. Mais uma vez me sorriu e gentilmente me ofereceu o seu lanche simples, sua refeição do dia.

Meu coração se apertou no peito, eu havia acabado de sair do restaurante da Universidade, onde garçons atenciosos serviram pratos fartos, preparados com cuidado, onde não imaginei que do lado de fora alguém sentia fome.

Eu lhe perguntei se gostaria de almoçar, ela recusou com polidez, disse que sua maior fome era de saber, de conhecer mais sobre as palavras.

Então lhe contei que talvez pudesse ajudá-la, trazia na minha própria bolsa de pano o livro "Uma história da leitura" do Alberto Manguel e lhe entreguei, ela pegou com cuidado e me olhou com receio de molhar o livro com as gotas de chuva que ainda caía, eu disse para não se preocupar, podia ler onde quisesse, era um presente meu.

Falei-lhe de um tempo em que também só trazia na bolsa um pacote de bolacha de água e sal para passar o dia, era estudante do Cursinho da Poli e sonhava em um dia cursar uma Faculdade.

Ela quis saber se consegui, eu lhe contei que sim, que fui aprovada no vestibular da PUC-SP onde fui contemplada com uma bolsa de estudos e tive a oportunidade de me formar professora.

Ela me fez uma pergunta inesperada.

- Será que eu consigo?

Eu então lhe respondi:

- Se você tem coragem para enfrentar o frio e a chuva para se dedicar à leitura, de sair da zona norte todos os dias para estudar na zona sul, de se privar do almoço para comprar livros, você já conseguiu o mais importante, ter determinação e fé. Não tenho dúvida de que chegará onde desejar e conte comigo no que eu puder ajudar.

Seus olhos choveram, os meus também.

Gratidão Maria, por seu exemplo de coragem, determinação e fé.

Gratidão por esta trajetória tão digna e tão bonita.

É por poder contribuir com pessoas com histórias como a sua, que tenho imenso orgulho de ser professora.

terça-feira, 26 de abril de 2016

Felicidade é:

Um fim de tarde na livraria.
Descobrir uma nova edição do seu livro preferido.
Um café quentinho com churros de doce de leite.
Presentear uma criança.
Uma conversa amena, um sorriso espontâneo.
Compartilhar um sonho.
Fazer uma nova amizade.
Ouvir uma canção ao longe.
Tirar uma fotografia.
Ensinar uma caligrafia.
Descobrir o universo no olhar de uma astronauta.
Colorir o mundo com lápis da Faber Castell.
Livros.


quinta-feira, 30 de julho de 2015

Palavras

"Os andarilhos, as crianças e os passarinhos 
têm o dom de ser poesia." 

Manoel de Barros 

Diálogo com uma turminha que observava o lago cheio de carpas do UniÍtalo:

Menino mais velho – Quem botou os peixes aqui moça, foi você?

Eu – Não, acho que foi o Reitor.

Menino mais novo – Ele botou os peixinhos aqui para a gente amar?

Eu – (risos) é acho que foi sim.

Menino mais velho – Você mora aqui? Eu queria morar aqui, tem pavão, tem natureza.

Eu – Trabalho aqui, é bonito né?

Menino mais velho – Você trabalha aqui? E faz o quê?

Eu – Trabalho com palavras.

Pergunto para cada um, se gostariam de estudar em uma Universidade quando crescessem e o que gostariam de estudar.

Menino mais velho – Eu queria mesmo é conhecer o mundo, é grande né? Quero ser jogador de futebol.

Menino mais novo – Meu negócio é pipa, você sabe empinar pipa moça?

Eu – Não, um dia você me ensina?

Menino mais novo – Ah! Mas isso toda criança sabe fazer!

E de repente a voz de uma menina que só agora eu ouvia me perguntou:

– Moça, quem trabalha com palavras não pode ser criança e fazê-las voarem no céu como pipas?

Senti o coração aquecido por aquela pergunta e, então, respondi:

– Sim minha querida, acho que trabalhar com palavras é fazê-las saírem do papel e se sentir um pouco criança enquanto as vê voarem tão alto, mas tão alto, que todas as crianças do mundo possam ouvi-las e se encantar com elas...

E ouvi uma vez mais aquela doce voz:

– Então é isso que quero fazer aqui, estudar palavras.



terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Cotidiano

Sufocou a dor da notícia que acabara que receber, colocou um meio sorriso no rosto e seguiu retirando o lixo dos banheiros.

Numa sala ao lado, alheias às lágrimas que teimavam em cair sobre a face enrugada, pessoas importantes, discutiam temas relevantes.

Pediu licença, entrou sem fazer barulho e retirou o último cesto de lixo.

Se despediu como fazia sempre, com um sorriso no rosto e a sensação de dever cumprido, os vidros reluziam, o carpete estava macio e sem manchas, sobre a mesa os blocos de notas, canetas e lápis descansavam.

Por entre as persianas uma leve brisa assoprava trazendo alento ao calor sufocante de janeiro. Um cheiro doce de flores de jasmim envolvia todo o ambiente.

Seguiu para o velório do irmão que falecera naquela manhã, a vida com suas dores e perdas, não cabia na pauta da reunião de temas relevantes.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

À Espera da Felicidade

Meus irmãos e eu estávamos ansiosos e muitos contentes, nossa prima Aliene chegaria de São Paulo para passar o Natal conosco na Fazenda.

Durante vários dias minha mãe juntou leite e fez requeijão, queijo, doce e deliciosos biscoitos de polvilho para esperá-la.

Estávamos todos na estrada esperando pelo ônibus que a traria.

A cada som de motor, nossos olhos brilhavam em expectativa, que era frustrada quando, na verdade, o que aparecia era um caminhão ou outro carro qualquer.

Só um ônibus passava por aquela estrada. Ele saía pela manhã de Monte Alegre, povoado próximo à fazenda, com destino a Porto Seguro, e só retornava à tarde. Mas o dia já envelhecia no horizonte e nada de Aliene.

Sentamos no chão, um ao lado do outro e continuamos a esperar. Até que avistamos ao longe, um pontinho em meio a uma nuvem cinza de poeira, só podia ser o ônibus. Vinha serpenteando pela estrada até se aproximar o bastante para termos certeza de que logo veríamos Aliene chegar.

Levantamos e pulamos de alegria. Ela chegara! Ela chegara! Gritávamos um para o outro em incontida felicidade.

O ônibus parou bem próximo de onde estávamos e, após alguns segundos intermináveis, Aliene desceu sorrindo e acenando para a gente. Ela abriu o bagageiro e de dentro tirou uma mala enorme, outra menor e algumas bolsas. Corremos para ajudá-la com a bagagem.

Minha mãe saiu na varanda para ver a razão de tamanha algazarra e ao ver Aliene apressou-se a abrir o portão para que entrássemos.

Foram muitos abraços apertados, beijos estalados e nós em volta esperando curiosos para saber o que ela trouxera nas malas.

Não tivemos que esperar muito, percebendo em nossos olhos brilhantes de expectativas o que queríamos, ela começou a abrir a mala maior. De dentro tirou várias coisas, roupas, sapatos, brinquedos. Ficamos atentos para saber a quem ela os daria. Cada um desejando em silêncio ser o primeiro.

Para meus irmãos Ronaldo, Gute e Bruno, ela entregou alguns shorts, camisetas, sapatos e várias bolinhas verdes, tão macias, que pareciam de pelúcia. E nos explicou serem bolinhas de tênis, um esporte muito praticado em São Paulo.

Para minha irmã Renata, um conjunto de saia e blusa rosa, vestidos, enfeites para o cabelo e um ursinho marrom.

Para minha mãe, calça legging, blusas, saias, tênis e um rádio-relógio, que a deixou encantada com suas múltiplas funções. Ela rapidamente o sintonizou numa rádio local e pudemos ouvir muitas canções.

Para mim, trouxe blusas, saias de vários modelos e um conjunto de saia e blusa parecido com o de Renata, porém, o meu era amarelo. Ganhei também dois livros, um contava a história de um Rei que não tinha orelha e o outro, a história da arca de Noé, eram lindos, com várias ilustrações coloridas. Aliene entregou-me ainda, com olhar de cumplicidade, um diário com cadeado. Foi nesse diário que registrei pela primeira vez as minhas ideias e impressões sobre as coisas.

Quando achávamos que já havíamos ganhado tudo que podíamos, Aliene retirou de um canto secreto da mala, duas bonecas Barbies! Deu uma para Renata e outra para mim. Eram lindas, com longos cabelos loiros, vestidos de princesa e sapatos de salto alto.

Enquanto Renata e eu já brincávamos com as bonecas, minha prima continuava a retirar coisas da mala: um tênis AllStar, duas blusas de frio, uma colorida de vermelho, azul e branco, outra branca e rosa.

Contou-nos que foram dos filhos do patrão dela, mas trouxera porque ainda estavam em bom estado e poderíamos usá-las por muito tempo ainda. Pediu para as experimentarmos e a quem servisse pudesse ficar.

Calcei o par de tênis AllStar e serviram direitinho! Eram brancos e fiquei feliz em saber que combinariam com meu uniforme da escola que era branco e azul.

A blusa de frio colorida serviu em Ronaldo. Era cheia de novidades, na parte de dentro havia vários bolsos, a gola podia ser aberta e de dentro saía um capuz, tinha muitos zíperes e botões do lado de fora. Cada manga era de uma cor, uma vermelha e a outra azul.

A outra blusa serviu em mim, era impermeável e toda branca, exceto pelos punhos, gola e zíperes que eram rosas, formando um bonito contraste.

O fato de ser verão e não pudermos usá-las, não diminuiu a minha alegria e a de meu irmão com nossas primeiras blusas de frio. Esperaríamos por um dia chuvoso na Bahia para usá-las, por um dia em que seríamos aquecidos por um calor que não viria do sol, mas do abraço da lã macia.

Aliene trouxe ainda, material escolar para todos nós. E para nossa surpresa ainda tirou mais coisas da mala preta, que a essa altura já acreditávamos ser mágica: uma caixa de panetone, uma caixa de bombons, um saco de balas e pirulitos, várias caixinhas de gelatina, chá em saquinho, que era uma grande novidade para nós, acostumados a colher no quintal de casa, a erva-cidreira e o capim santo para o chá servido com biscoitos quentinhos aos finais de tarde.

Finalmente, deixamos Aliene e minha mãe conversarem a sós, os adultos sempre tinham muitas coisas a dizer. Já o nosso diálogo era silencioso, agradecíamos por ter alguém que cuidaria da gente mesmo na ausência de nosso pai. Agradecíamos por ter um Natal como deveria ser o de toda criança, com presentes, comida na mesa e sorrisos nos rostos.

Aliene voltaria nos anos seguintes, sempre carregada de presentes, sempre cheia de sorrisos, sempre dona de uma alegria que só quem faz uma criança feliz, pode ter.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Carta de Gabriel García Márquez

“Se, por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo e me presenteasse com um pedaço de vida, possivelmente não diria tudo o que penso, mas, certamente pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo o que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, pois sei que a cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os demais parassem, acordaria quando os outros dormem. Escutaria quando os outros falassem e desfrutaria de um bom sorvete de chocolate.

Se Deus me presenteasse com um pedaço de vida vestiria simplesmente, jorgar-me-ia de bruços no solo, deixando a descoberto não apenas meu corpo, como também a minha alma.

Deus meu, se eu tivesse um coração, escreveria o meu ódio sobre o gelo e esperaria que o sol saísse. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas um poema de Mário Benedetti e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à Lua. Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos espinhos e o encarnado beijo das suas pétalas.

Deus meu, se eu tivesse um pedaço de vida!… Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas: amo-te, amo-te. Convenceria cada mulher e cada homem de que são os meus favoritos e viveria apaixonado pelo amor.

Aos homens, provar-lhes-ia como estão enganados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saber que envelhecem quando deixam de se apaixonar.

A uma criança, daria asas, mas deixaria que aprendesse a voar sozinha.

Aos velhos ensinaria que a morte não chega com a velhice, mas com o esquecimento.

Tantas coisas aprendi com vocês, os homens… Aprendi que todos querem viver no cimo da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a rampa. Aprendi que quando um recém-nascido aperta, com sua pequena mão, pela primeira vez, o dedo do pai, tem-no prisioneiro para sempre. Aprendi que um homem só tem o direito de olhar um outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se.

São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas, a mim não poderão servir muito, porque quando me olharem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer.”

Carta divulgada por Jaime García Marquéz, irmão do autor, que anunciou ao mundo que García Marquéz sofria de uma demência senil, doença que fez com que deixasse de escrever livros, mas que não lhe tirou a força das palavras.

Em cada palavra há beleza, simplicidade, poesia. Em cada palavra há, sobretudo, um aprendizado de humanidade, por isso, quis compartilhá-la. 

domingo, 18 de agosto de 2013

Quatro Vezes Lucas...

Lucas seguiu um caminho temido por alguns e desejado por outros, o caminho do crime.

Foi traficante, ambulante, presidiário, hoje é professor.

No Cadeião de Pinheiros – para onde foi levado após se negar a continuar pagando um tributo à polícia para traficar livremente –, viu companheiros de cela serem torturados e assassinados e o tráfico persistir dentro do presídio.

Lucas não queria morrer, não queria ser mais traficante, presidiário, queria ser estudante.

Antes de ser preso havia prestado o vestibular da PUC-SP e fora aprovado. Sua mãe, vendo uma oportunidade do filho mudar de vida por meio dos estudos, foi até o setor judiciário da Universidade e conseguiu advogados que negociaram a sua liberdade condicional. Em troca, deveria apresentar bom comportamento e dedicação ao curso. Também conseguiram uma bolsa de estudos com a qual Lucas pode realizar seu desejo de cursar uma faculdade e um dia voltar a ser livre.

Quando terminou a Faculdade de Letras, já havia cumprido a sua pena e quis dar um passo ainda maior, fazer a prova para o Mestrado. Em meio a apostas de que não conseguiria, lá estava ele no primeiro dia de aula, aluno do Mestrado em Língua Portuguesa, como muitos jamais supunham ele seria, como o próprio Lucas chegou a duvidar que seria.

Lucas traficante… 
Lucas ambulante…
Lucas estudante…
Lucas professor…

Quatro vezes Lucas mudou a sua história.

Durante a graduação foi por vezes, marginalizado, ridicularizado, por falar a língua descrita por Manuel Bandeira no poema Evocação do Recife, como a língua que

"(...) Vinha da boca do povo na língua errada do povo 
Língua certa do povo 
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil 
Ao passo que nós 
O que fazemos 
É macaquear 
A sintaxe lusíada".

Em sua linguagem permeada por gírias, ele na verdade, se expressava da forma mais bonita, mais “português-Brasil”, “português-25-de-março”, por que era a forma que atingia, a um só tempo, o passante, o comprador, o ambulante, o policial, o povo.

Foi preciso que Lucas percorresse um longo caminho, até encontrar em seu jeito de falar, a matéria de um estudo, “A gíria do Brasil”, disciplina do Mestrado em Língua Portuguesa, que não tinha a gíria como objeto de crítica, mas de pesquisa, entendimento e aprendizado, sobre as formas de se expressar dos diversos grupos sociais.

Com entusiasmo ouviu o primeiro ensinamento do mestre Dino Pretti: “Mexer com linguagem, é mexer com a essência das pessoas, o professor deve ser, portanto, desprovido de preconceitos”.

Lucas encontrara o seu lugar – fora do presídio, dentro da Universidade.

sábado, 10 de agosto de 2013

Através da Janela

"Era uma viagem inventada no feliz; 
Para ele, produzia-se em caso de sonho. 
Saíam ainda com o escuro, 
o ar fino de cheiros desconhecidos".

Guimarães Rosa

Eu estava eufórica, era a primeira vez que viajaria para além dos limites da fazenda e dos povoados em volta.

Meu pai disse que seria um passeio mais longo, pois iríamos para outro Estado, onde ficaríamos por alguns dias.

Em meus oito anos, a possibilidade de conhecer outros lugares, provocava um misto de ansiedade e alegria.

Quando o grande dia chegou, minha mãe fez várias recomendações a meu pai: “não a deixe ficar sem comer”, “nem dormir tarde”, “não a deixe sozinha”. E também pediu para que eu cuidasse do meu pai.

Foi conosco, “Miro” que guiaria o carro, e “Tiana” que iria comigo no banco detrás, ambos eram meus irmãos mais velhos, filhos do primeiro casamento do meu pai.

A bordo de um Del Rei cinza, saímos da Fazenda Flor da Barra no interior da Bahia, com destino à capital de Minas Gerais, Belo Horizonte.

Meus olhos não desgrudavam da janela do carro, eu queria ver tudo, absorver tudo. Ver as cidades ficando distantes, distantes, pequenininhas, pequenininhas, até desaparecerem e a imagem ser substituída pela imensidão verde dos pastos e plantações.

Ao longe eu via rios, montanhas e pedras enormes. Desejei que minha mãe e meus irmãos também estivessem ali para verem tantas coisas bonitas, tantos lugares e pessoas, ou de ter uma forma de registrar tudo e mostrar a eles quando voltasse, mas não tinha. Aquelas paisagens, sensações e sentimentos, não poderiam ser guardados em nenhum outro lugar, além da minha memória.

Estava tão entretida observando a paisagem que mal ouvi a voz do meu pai dizendo que logo passaríamos pela cidade em que ele nasceu. Quando mencionou o nome, Almenara, minha curiosidade despertou, pois ele sempre falava dessa cidade.

Acabamos passando por Almenara à noite e não pude vê-la. Fiquei muito decepcionada, mas hoje penso que foi melhor assim, porque conservo a imagem da Almenara de sua infância, dos seus primeiros sonhos e descobertas.

Miro nos disse que pararíamos na próxima cidade, Teófilo Otoni, para dormirmos e podermos descansar um pouco para continuar a viagem no dia seguinte.

Estávamos já na metade do caminho para se chegar a Belo Horizonte. Por um lado, queria chegar logo a nosso destino, por outro, queria que aquela viagem não acabasse nunca, para continuar a ver e me encantar com coisas novas, para ouvir as histórias do meu pai que ele nunca contara antes.

Mas chegamos. Era noite e havia tantas luzes coloridas, prédios enormes! ... O Del Rei se perdeu em meio a uma vastidão de outros carros.

Na recepção do hotel a proprietária ficou surpresa com o fato de eu ser branca e meu pai negro. Nunca havia me ocorrido que houvesse alguma importância em se ter cores diferentes. Meu pai percebendo o espanto no rosto da mulher explicou:

– Ela se parece com a mãe, que é branca.

Nossos quartos ficavam nos últimos andares. Eu dividiria um quarto com Tiana e meu pai outro com Miro.

Pela manhã, quando descemos para tomar o café, meu pai disse que eu ficaria no hotel enquanto ele e meus irmãos sairiam para resolver algumas coisas.

Eu não vi problema algum, pois havia gostado do hotel. Antes de saírem me pediram para não sair do quarto. Ao que também obedeci prontamente.

Mais tarde veio a camareira para limpá-lo. Era uma moça muito simpática, e conversamos durante todo o tempo em que ficou no quarto.

Já era quase meio dia e não haviam retornado. Ouvi então uma batida na porta e abri esperançosa de que fossem eles. Era a camareira novamente, dessa vez, veio me perguntar se eu estava com fome, pois me trouxe um lanche e explicou que no hotel não serviam almoço. Eu aceitei e agradeci, comendo tudo num instante.

Logo depois chegaram e ouvi meu irmão comentar com meu pai que a cirurgia seria no dia seguinte. Não entendi bem, será de que cirurgia falavam?

– Pai, quem vai fazer uma cirurgia? Perguntei-lhe.

– Sou eu filha, foi por isso que viemos para essa cidade, estou doente e preciso fazer uma cirurgia para ficar bom.

Só então compreendi que aquela não era uma viagem de férias.

De repente, fragmentos de conversas, de momentos dispersos no tempo, surgiram com nitidez em minha memória. E uma palavra que eu não conhecia ecoava como se viesse de um sonho antigo, que eu quisera esquecer: metástase.

O pedido da minha mãe, para que eu cuidasse do meu pai ganhou outro significado. E nos dias em que passamos em Belo Horizonte, não voltei a ficar no hotel, o acompanhei no dia da cirurgia e durante todo o período de internação até o dia em que teve alta e o médico disse que poderíamos voltar para a Bahia.

Mas ainda não queria que aquela viagem terminasse e fiz um pedido a meu pai.

– Pai, eu queria ver o mar.

– Mas minha filha, não existe mar em Minas Gerais e a fazenda fica perto do litoral – explicou-me.

– Mas nunca vi o mar e queria vê-lo com você.

Meu pai conversou com meus irmãos e concordaram em estender a viagem.

No dia seguinte deixamos Belo Horizonte. Mais uma vez, meu coração batia como que enfeitiçado, cheio de uma alegria grande.

Uma brisa suave tocava meu rosto através da janela e um azul que beijava o céu transformava todo meu olhar em infinito. Tudo era mar. Imensidão de água, cheiros e cores.

Descemos do carro e num instante que tinha ares de eternidade, fui abraçada pelo vento e acariciada pela areia fina de Copacabana.

O mar era tudo. Toda beleza condensada em azul, mundo entrando pelos olhos. Tudo o que hoje eu tenho saudade.

O meu pai olhava para um ponto ao longe, eu segui o seu olhar e também vi, era o Cristo Redentor de braços abertos sobre o Rio de Janeiro, protegendo e abençoando a cidade maravilhosa. Era uma esperança de que tudo daria certo.

Ficamos apenas um dia no Rio de Janeiro e seguimos para São Paulo, onde meu avô estava já há alguns meses também se tratando de um câncer.

São Paulo era multidão, de carros, de pessoas, de sons. Era uma cidade em tempo gerúndio, onde tudo era movimento.

Ficamos alguns dias e meu avô ficou feliz com nossa visita.

Sem poder mais postergar a viagem, retornamos à Bahia.

Meu pai não pode voltar para a fazenda, porque ainda precisava de cuidados médicos, eu também fiquei na cidade. Foram dias de muitas histórias e risadas. E dores constantes e uma palavra que voltava não mais como fragmento de um sonho, mas parte integrante da realidade. Metástase.

Fomos ao médico e o ouvi dizer a meu pai, que ele já podia retornar à fazenda. Por muito tempo, aquilo foi tudo o que eu mais quis ouvir, que voltaríamos para casa, mas voltar significava agora que já não havia caminhos possíveis.

Naquele mesmo dia, meu pai pediu a um amigo para que me levasse pra casa, mas ele não iria conosco.

Levou-me a uma loja no centro da cidade, comprou uma boneca para mim e outra para minha irmã, me deu a bênção e colocou-me dentro do carro.

Eu acenei através da janela, mas ele já não via.

Por muito tempo, toda a viagem ficou encoberta num ponto distante da minha memória. Só a lembrança desse aceno através da janela permaneceu em mim. E de que não gostava de olhar o mar.

Mas lendo um texto de um amigo chamado “As memórias que guardo do meu pai”, memórias doces, de momentos de cumplicidade e companheirismo, de repente, toda a névoa se esvaneceu e minhas próprias memórias se fizeram nítidas. E como eram belas! Encontrei rios, serras, pedras, estradas com curvas e retas que levavam a lugares surpreendentes e no final da viagem, o mar. E meu pai, me contando histórias, voltando pra casa, cheio de uma alegria grande, como a minha.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Senha 24

Olhares reticentes, saudação sem respostas, silêncio.

Numa sala da ETEC de Santo Amaro, retirei minha senha e sentei-me para aguardar junto a outros 23 professores, a chamada para fazer a inscrição no Processo Seletivo da Instituição. 

Pensava no quanto minha espera seria longa, ao olhar em volta e não encontrar nenhum rosto conhecido ou que demonstrasse qualquer simpatia. 

De repente, vi entrar uma mulher elegantemente vestida, com olhar altivo, mas cheio de ternura. Retirou sua senha, sentou-se ao meu lado e para minha surpresa, quebrou o silêncio opressivo dizendo:

– Deniz! 

Olhei-a com atenção e reconheci o rosto cheio de simpatia, era uma colega da Faculdade que não via a cerca de seis anos.

Abraçamo-nos, felizes pelo reencontro inesperado.

Ela quis saber por onde andei, se havia terminado o mestrado. Respondi que andei por muitos lugares, trabalhei em outros tantos e só agora voltava a estudar. E que tinha inventado de contar estórias num blog.

Eu perguntei sobre ela. Contou-me que se casou.

A ternura desapareceu do seu olhar e voltou a perguntar sobre mim:

– Me fale mais sobre o blog, que tipo de histórias você conta?

– São histórias que vivi, ou de encontros com pessoas que me ensinaram muita coisa com suas próprias histórias – respondi.

Ela então fez um pedido:

– Gostaria de contar uma história para que você a reconte em seu blog.

– Que história? – questionei.

– É sobre a violência contra a mulher. Durante o meu casamento fui agredida muitas vezes, mas meu marido, sempre se desculpava depois, me beijava e tudo ficava perfeito de novo.

– Ele ficava violento por qualquer motivo, principalmente, se eu discordasse de alguma coisa, como quando decidiu que precisávamos comprar um carro. Eu disse que era melhor dar entrada num apartamento e sair do aluguel, mas ele não ouviu, e levei a primeira surra. Compramos o carro, ele ficou feliz. Mas não demorou a voltar a me agredir. Passei a ter medo, um medo que me paralisava. Por isso, não registrava nenhum boletim de ocorrência.

– Até que um dia, ele me segurou pelo pescoço e tentou estrangular-me, consegui gritar por socorro e os vizinhos me salvaram. Naquele dia percebi que ele nunca iria mudar, que na verdade, quem teria que mudar seria eu e decidi pedir o divórcio. Novamente disse que estava arrependido, que nunca mais tocaria em mim se eu voltasse, mas já não tinha medo e segui adiante com o divórcio, ele disse que só aceitava se eu abrisse mão do carro que compramos juntos.

– Mesmo sabendo que não era justo, pois havia trabalhado muito para pagar aquele carro, ainda assim aceitei, porque naquele momento nada era mais valioso que a minha liberdade.

– Ele ficou contente, acreditava que mais uma vez, havia me intimidado, mas o denunciei à polícia. Hoje sou livre. 

– Fiz o intercâmbio que sempre quis, para aperfeiçoar o Espanhol, retornei à minha cidade em Minas para rever os amigos, dos quais me afastei após o casamento e, acabei reencontrando com o meu primeiro namorado. Resultado. Nos casamos, e com ele descobri que é possível ser feliz com outra pessoa, desde que a respeite, confie em você e a incentive a alcançar os seus sonhos. É por causa do incentivo do meu marido que vim aqui hoje fazer a inscrição para a vaga de Professora de Espanhol.

– Deniz, quis partilhar esta história, para alertar às mulheres que são agredidas, que têm medo, que passam por qualquer tipo de violência, que apesar de ser muito difícil quebrar o silêncio, essa é a única forma de sobreviver. A gente estuda, trabalha, tem amigos, tem família, mas de repente, deixa de fazer parte de tudo isso e vive em função de um opressor. Acha que nunca vai acontecer conosco, o que é um erro. 

– A violência doméstica não é praticada apenas contra mulheres que não tiveram acesso à informação, ao estudo, nada nos prepara para essa agressão que não é apenas física. O começo nunca é um tapa, um puxão de cabelo, um chute. O começo é aquele sonho que acalenta e o seu companheiro diz que é besteira, e você desiste, porque acaba dando razão à ele. É aquele emprego que almejava e conseguiu, mas você desiste, porque o seu companheiro diz que gostaria de tê-la sempre ao seu lado em casa. É aquele encontro com os amigos que você desiste de ir, porque o seu companheiro diz que essas amizades não são boas para você. 

– Quando vem o primeiro tapa, você já não tem mais sonhos, nem objetivos, nem amigos, nem voz. 

– Segurei suas mãos entre as minhas e a agradeci pela confiança em contar-me sua história, pelos sorrisos que fizeram das horas, segundos, pela coragem de seguir adiante com aquela ternura que só quem já sofreu, já chorou, já caiu, pode trazer no olhar.

Senha 24!

– Minha vez – sorri.

– Boa sorte amiga! – desejou-me, também sorrindo.

– Pra nós minha querida, pra nós.