quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Carta de Gabriel García Márquez

“Se, por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo e me presenteasse com um pedaço de vida, possivelmente não diria tudo o que penso, mas, certamente pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo o que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, pois sei que a cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os demais parassem, acordaria quando os outros dormem. Escutaria quando os outros falassem e desfrutaria de um bom sorvete de chocolate.

Se Deus me presenteasse com um pedaço de vida vestiria simplesmente, jorgar-me-ia de bruços no solo, deixando a descoberto não apenas meu corpo, como também a minha alma.

Deus meu, se eu tivesse um coração, escreveria o meu ódio sobre o gelo e esperaria que o sol saísse. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas um poema de Mário Benedetti e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à Lua. Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos espinhos e o encarnado beijo das suas pétalas.

Deus meu, se eu tivesse um pedaço de vida!… Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas: amo-te, amo-te. Convenceria cada mulher e cada homem de que são os meus favoritos e viveria apaixonado pelo amor.

Aos homens, provar-lhes-ia como estão enganados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saber que envelhecem quando deixam de se apaixonar.

A uma criança, daria asas, mas deixaria que aprendesse a voar sozinha.

Aos velhos ensinaria que a morte não chega com a velhice, mas com o esquecimento.

Tantas coisas aprendi com vocês, os homens… Aprendi que todos querem viver no cimo da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a rampa. Aprendi que quando um recém-nascido aperta, com sua pequena mão, pela primeira vez, o dedo do pai, tem-no prisioneiro para sempre. Aprendi que um homem só tem o direito de olhar um outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se.

São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas, a mim não poderão servir muito, porque quando me olharem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer.”

Carta divulgada por Jaime García Marquéz, irmão do autor, que anunciou ao mundo que García Marquéz sofria de uma demência senil, doença que fez com que deixasse de escrever livros, mas que não lhe tirou a força das palavras.

Em cada palavra há beleza, simplicidade, poesia. Em cada palavra há, sobretudo, um aprendizado de humanidade, por isso, quis compartilhá-la. 

domingo, 18 de agosto de 2013

Quatro Vezes Lucas...

Lucas seguiu um caminho temido por alguns e desejado por outros, o caminho do crime.

Foi traficante, ambulante, presidiário, hoje é professor.

No Cadeião de Pinheiros – para onde foi levado após se negar a continuar pagando um tributo à polícia para traficar livremente –, viu companheiros de cela serem torturados e assassinados e o tráfico persistir dentro do presídio.

Lucas não queria morrer, não queria ser mais traficante, presidiário, queria ser estudante.

Antes de ser preso havia prestado o vestibular da PUC-SP e fora aprovado. Sua mãe, vendo uma oportunidade do filho mudar de vida por meio dos estudos, foi até o setor judiciário da Universidade e conseguiu advogados que negociaram a sua liberdade condicional. Em troca, deveria apresentar bom comportamento e dedicação ao curso. Também conseguiram uma bolsa de estudos com a qual Lucas pode realizar seu desejo de cursar uma faculdade e um dia voltar a ser livre.

Quando terminou a Faculdade de Letras, já havia cumprido a sua pena e quis dar um passo ainda maior, fazer a prova para o Mestrado. Em meio a apostas de que não conseguiria, lá estava ele no primeiro dia de aula, aluno do Mestrado em Língua Portuguesa, como muitos jamais supunham ele seria, como o próprio Lucas chegou a duvidar que seria.

Lucas traficante… 
Lucas ambulante…
Lucas estudante…
Lucas professor…

Quatro vezes Lucas mudou a sua história.

Durante a graduação foi por vezes, marginalizado, ridicularizado, por falar a língua descrita por Manuel Bandeira no poema Evocação do Recife, como a língua que

"(...) Vinha da boca do povo na língua errada do povo 
Língua certa do povo 
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil 
Ao passo que nós 
O que fazemos 
É macaquear 
A sintaxe lusíada".

Em sua linguagem permeada por gírias, ele na verdade, se expressava da forma mais bonita, mais “português-Brasil”, “português-25-de-março”, por que era a forma que atingia, a um só tempo, o passante, o comprador, o ambulante, o policial, o povo.

Foi preciso que Lucas percorresse um longo caminho, até encontrar em seu jeito de falar, a matéria de um estudo, “A gíria do Brasil”, disciplina do Mestrado em Língua Portuguesa, que não tinha a gíria como objeto de crítica, mas de pesquisa, entendimento e aprendizado, sobre as formas de se expressar dos diversos grupos sociais.

Com entusiasmo ouviu o primeiro ensinamento do mestre Dino Pretti: “Mexer com linguagem, é mexer com a essência das pessoas, o professor deve ser, portanto, desprovido de preconceitos”.

Lucas encontrara o seu lugar – fora do presídio, dentro da Universidade.

sábado, 10 de agosto de 2013

Através da Janela

"Era uma viagem inventada no feliz; 
Para ele, produzia-se em caso de sonho. 
Saíam ainda com o escuro, 
o ar fino de cheiros desconhecidos".

Guimarães Rosa

Eu estava eufórica, era a primeira vez que viajaria para além dos limites da fazenda e dos povoados em volta.

Meu pai disse que seria um passeio mais longo, pois iríamos para outro Estado, onde ficaríamos por alguns dias.

Em meus oito anos, a possibilidade de conhecer outros lugares, provocava um misto de ansiedade e alegria.

Quando o grande dia chegou, minha mãe fez várias recomendações a meu pai: “não a deixe ficar sem comer”, “nem dormir tarde”, “não a deixe sozinha”. E também pediu para que eu cuidasse do meu pai.

Foi conosco, “Miro” que guiaria o carro, e “Tiana” que iria comigo no banco detrás, ambos eram meus irmãos mais velhos, filhos do primeiro casamento do meu pai.

A bordo de um Del Rei cinza, saímos da Fazenda Flor da Barra no interior da Bahia, com destino à capital de Minas Gerais, Belo Horizonte.

Meus olhos não desgrudavam da janela do carro, eu queria ver tudo, absorver tudo. Ver as cidades ficando distantes, distantes, pequenininhas, pequenininhas, até desaparecerem e a imagem ser substituída pela imensidão verde dos pastos e plantações.

Ao longe eu via rios, montanhas e pedras enormes. Desejei que minha mãe e meus irmãos também estivessem ali para verem tantas coisas bonitas, tantos lugares e pessoas, ou de ter uma forma de registrar tudo e mostrar a eles quando voltasse, mas não tinha. Aquelas paisagens, sensações e sentimentos, não poderiam ser guardados em nenhum outro lugar, além da minha memória.

Estava tão entretida observando a paisagem que mal ouvi a voz do meu pai dizendo que logo passaríamos pela cidade em que ele nasceu. Quando mencionou o nome, Almenara, minha curiosidade despertou, pois ele sempre falava dessa cidade.

Acabamos passando por Almenara à noite e não pude vê-la. Fiquei muito decepcionada, mas hoje penso que foi melhor assim, porque conservo a imagem da Almenara de sua infância, dos seus primeiros sonhos e descobertas.

Miro nos disse que pararíamos na próxima cidade, Teófilo Otoni, para dormirmos e podermos descansar um pouco para continuar a viagem no dia seguinte.

Estávamos já na metade do caminho para se chegar a Belo Horizonte. Por um lado, queria chegar logo a nosso destino, por outro, queria que aquela viagem não acabasse nunca, para continuar a ver e me encantar com coisas novas, para ouvir as histórias do meu pai que ele nunca contara antes.

Mas chegamos. Era noite e havia tantas luzes coloridas, prédios enormes! ... O Del Rei se perdeu em meio a uma vastidão de outros carros.

Na recepção do hotel a proprietária ficou surpresa com o fato de eu ser branca e meu pai negro. Nunca havia me ocorrido que houvesse alguma importância em se ter cores diferentes. Meu pai percebendo o espanto no rosto da mulher explicou:

– Ela se parece com a mãe, que é branca.

Nossos quartos ficavam nos últimos andares. Eu dividiria um quarto com Tiana e meu pai outro com Miro.

Pela manhã, quando descemos para tomar o café, meu pai disse que eu ficaria no hotel enquanto ele e meus irmãos sairiam para resolver algumas coisas.

Eu não vi problema algum, pois havia gostado do hotel. Antes de saírem me pediram para não sair do quarto. Ao que também obedeci prontamente.

Mais tarde veio a camareira para limpá-lo. Era uma moça muito simpática, e conversamos durante todo o tempo em que ficou no quarto.

Já era quase meio dia e não haviam retornado. Ouvi então uma batida na porta e abri esperançosa de que fossem eles. Era a camareira novamente, dessa vez, veio me perguntar se eu estava com fome, pois me trouxe um lanche e explicou que no hotel não serviam almoço. Eu aceitei e agradeci, comendo tudo num instante.

Logo depois chegaram e ouvi meu irmão comentar com meu pai que a cirurgia seria no dia seguinte. Não entendi bem, será de que cirurgia falavam?

– Pai, quem vai fazer uma cirurgia? Perguntei-lhe.

– Sou eu filha, foi por isso que viemos para essa cidade, estou doente e preciso fazer uma cirurgia para ficar bom.

Só então compreendi que aquela não era uma viagem de férias.

De repente, fragmentos de conversas, de momentos dispersos no tempo, surgiram com nitidez em minha memória. E uma palavra que eu não conhecia ecoava como se viesse de um sonho antigo, que eu quisera esquecer: metástase.

O pedido da minha mãe, para que eu cuidasse do meu pai ganhou outro significado. E nos dias em que passamos em Belo Horizonte, não voltei a ficar no hotel, o acompanhei no dia da cirurgia e durante todo o período de internação até o dia em que teve alta e o médico disse que poderíamos voltar para a Bahia.

Mas ainda não queria que aquela viagem terminasse e fiz um pedido a meu pai.

– Pai, eu queria ver o mar.

– Mas minha filha, não existe mar em Minas Gerais e a fazenda fica perto do litoral – explicou-me.

– Mas nunca vi o mar e queria vê-lo com você.

Meu pai conversou com meus irmãos e concordaram em estender a viagem.

No dia seguinte deixamos Belo Horizonte. Mais uma vez, meu coração batia como que enfeitiçado, cheio de uma alegria grande.

Uma brisa suave tocava meu rosto através da janela e um azul que beijava o céu transformava todo meu olhar em infinito. Tudo era mar. Imensidão de água, cheiros e cores.

Descemos do carro e num instante que tinha ares de eternidade, fui abraçada pelo vento e acariciada pela areia fina de Copacabana.

O mar era tudo. Toda beleza condensada em azul, mundo entrando pelos olhos. Tudo o que hoje eu tenho saudade.

O meu pai olhava para um ponto ao longe, eu segui o seu olhar e também vi, era o Cristo Redentor de braços abertos sobre o Rio de Janeiro, protegendo e abençoando a cidade maravilhosa. Era uma esperança de que tudo daria certo.

Ficamos apenas um dia no Rio de Janeiro e seguimos para São Paulo, onde meu avô estava já há alguns meses também se tratando de um câncer.

São Paulo era multidão, de carros, de pessoas, de sons. Era uma cidade em tempo gerúndio, onde tudo era movimento.

Ficamos alguns dias e meu avô ficou feliz com nossa visita.

Sem poder mais postergar a viagem, retornamos à Bahia.

Meu pai não pode voltar para a fazenda, porque ainda precisava de cuidados médicos, eu também fiquei na cidade. Foram dias de muitas histórias e risadas. E dores constantes e uma palavra que voltava não mais como fragmento de um sonho, mas parte integrante da realidade. Metástase.

Fomos ao médico e o ouvi dizer a meu pai, que ele já podia retornar à fazenda. Por muito tempo, aquilo foi tudo o que eu mais quis ouvir, que voltaríamos para casa, mas voltar significava agora que já não havia caminhos possíveis.

Naquele mesmo dia, meu pai pediu a um amigo para que me levasse pra casa, mas ele não iria conosco.

Levou-me a uma loja no centro da cidade, comprou uma boneca para mim e outra para minha irmã, me deu a bênção e colocou-me dentro do carro.

Eu acenei através da janela, mas ele já não via.

Por muito tempo, toda a viagem ficou encoberta num ponto distante da minha memória. Só a lembrança desse aceno através da janela permaneceu em mim. E de que não gostava de olhar o mar.

Mas lendo um texto de um amigo chamado “As memórias que guardo do meu pai”, memórias doces, de momentos de cumplicidade e companheirismo, de repente, toda a névoa se esvaneceu e minhas próprias memórias se fizeram nítidas. E como eram belas! Encontrei rios, serras, pedras, estradas com curvas e retas que levavam a lugares surpreendentes e no final da viagem, o mar. E meu pai, me contando histórias, voltando pra casa, cheio de uma alegria grande, como a minha.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Senha 24

Olhares reticentes, saudação sem respostas, silêncio.

Numa sala da ETEC de Santo Amaro, retirei minha senha e sentei-me para aguardar junto a outros 23 professores, a chamada para fazer a inscrição no Processo Seletivo da Instituição. 

Pensava no quanto minha espera seria longa, ao olhar em volta e não encontrar nenhum rosto conhecido ou que demonstrasse qualquer simpatia. 

De repente, vi entrar uma mulher elegantemente vestida, com olhar altivo, mas cheio de ternura. Retirou sua senha, sentou-se ao meu lado e para minha surpresa, quebrou o silêncio opressivo dizendo:

– Deniz! 

Olhei-a com atenção e reconheci o rosto cheio de simpatia, era uma colega da Faculdade que não via a cerca de seis anos.

Abraçamo-nos, felizes pelo reencontro inesperado.

Ela quis saber por onde andei, se havia terminado o mestrado. Respondi que andei por muitos lugares, trabalhei em outros tantos e só agora voltava a estudar. E que tinha inventado de contar estórias num blog.

Eu perguntei sobre ela. Contou-me que se casou.

A ternura desapareceu do seu olhar e voltou a perguntar sobre mim:

– Me fale mais sobre o blog, que tipo de histórias você conta?

– São histórias que vivi, ou de encontros com pessoas que me ensinaram muita coisa com suas próprias histórias – respondi.

Ela então fez um pedido:

– Gostaria de contar uma história para que você a reconte em seu blog.

– Que história? – questionei.

– É sobre a violência contra a mulher. Durante o meu casamento fui agredida muitas vezes, mas meu marido, sempre se desculpava depois, me beijava e tudo ficava perfeito de novo.

– Ele ficava violento por qualquer motivo, principalmente, se eu discordasse de alguma coisa, como quando decidiu que precisávamos comprar um carro. Eu disse que era melhor dar entrada num apartamento e sair do aluguel, mas ele não ouviu, e levei a primeira surra. Compramos o carro, ele ficou feliz. Mas não demorou a voltar a me agredir. Passei a ter medo, um medo que me paralisava. Por isso, não registrava nenhum boletim de ocorrência.

– Até que um dia, ele me segurou pelo pescoço e tentou estrangular-me, consegui gritar por socorro e os vizinhos me salvaram. Naquele dia percebi que ele nunca iria mudar, que na verdade, quem teria que mudar seria eu e decidi pedir o divórcio. Novamente disse que estava arrependido, que nunca mais tocaria em mim se eu voltasse, mas já não tinha medo e segui adiante com o divórcio, ele disse que só aceitava se eu abrisse mão do carro que compramos juntos.

– Mesmo sabendo que não era justo, pois havia trabalhado muito para pagar aquele carro, ainda assim aceitei, porque naquele momento nada era mais valioso que a minha liberdade.

– Ele ficou contente, acreditava que mais uma vez, havia me intimidado, mas o denunciei à polícia. Hoje sou livre. 

– Fiz o intercâmbio que sempre quis, para aperfeiçoar o Espanhol, retornei à minha cidade em Minas para rever os amigos, dos quais me afastei após o casamento e, acabei reencontrando com o meu primeiro namorado. Resultado. Nos casamos, e com ele descobri que é possível ser feliz com outra pessoa, desde que a respeite, confie em você e a incentive a alcançar os seus sonhos. É por causa do incentivo do meu marido que vim aqui hoje fazer a inscrição para a vaga de Professora de Espanhol.

– Deniz, quis partilhar esta história, para alertar às mulheres que são agredidas, que têm medo, que passam por qualquer tipo de violência, que apesar de ser muito difícil quebrar o silêncio, essa é a única forma de sobreviver. A gente estuda, trabalha, tem amigos, tem família, mas de repente, deixa de fazer parte de tudo isso e vive em função de um opressor. Acha que nunca vai acontecer conosco, o que é um erro. 

– A violência doméstica não é praticada apenas contra mulheres que não tiveram acesso à informação, ao estudo, nada nos prepara para essa agressão que não é apenas física. O começo nunca é um tapa, um puxão de cabelo, um chute. O começo é aquele sonho que acalenta e o seu companheiro diz que é besteira, e você desiste, porque acaba dando razão à ele. É aquele emprego que almejava e conseguiu, mas você desiste, porque o seu companheiro diz que gostaria de tê-la sempre ao seu lado em casa. É aquele encontro com os amigos que você desiste de ir, porque o seu companheiro diz que essas amizades não são boas para você. 

– Quando vem o primeiro tapa, você já não tem mais sonhos, nem objetivos, nem amigos, nem voz. 

– Segurei suas mãos entre as minhas e a agradeci pela confiança em contar-me sua história, pelos sorrisos que fizeram das horas, segundos, pela coragem de seguir adiante com aquela ternura que só quem já sofreu, já chorou, já caiu, pode trazer no olhar.

Senha 24!

– Minha vez – sorri.

– Boa sorte amiga! – desejou-me, também sorrindo.

– Pra nós minha querida, pra nós.

sábado, 2 de março de 2013

Era uma vez uma casa...

– Você não deveria ir a esse jogo.

– Porque não pequenina?

– Por que vai acontecer uma coisa ruim com você lá.

Aos quatro anos de idade eu conversava com Astrogildo. Não o conhecia da escola, nem da rua em que morávamos, o conhecia das visitas que fazia à minha família no povoado de São João do Sul, interior da Bahia.

Astrogildo era o melhor amigo do meu pai. Lembro-me de vê-los jogarem sinuca por horas, num desafio que nunca terminava. Ele era, sobretudo, um andarilho. E, embora tivesse uma casa no povoado, sua verdadeira casa era o mundo.

Cada vez que voltava, trazia-me um presente, punha-me no colo e contava histórias sobre as terras distantes por onde andou, as pessoas com quem cruzou e as aventuras que viveu. Eu o escutava com os olhos brilhantes de curiosidade. Não imaginava o mundo para além do povoado. Nunca tinha saído de lá, quase ninguém tinha, nem mesmo as pessoas grandes.

No povoado, todos o admiravam, porque conhecia lugares onde ninguém mais tinha ido e falava línguas diferentes da nossa. Era um homem de cultura, meu pai dizia. Tinha conhecimento e generosidade em transmiti-lo. Generosidade talvez fosse a melhor palavra para defini-lo, não raro, ao chegar ao povoado, fazia grandes feiras e doava aos moradores mais pobres. Aonde ele chegava havia fartura e ninguém sentia fome.

Mas naquele dia, havia algo diferente, eu não queria ouvir suas histórias, queria que ouvisse a minha, não sei por que disse aquelas palavras a ele, nunca soube. Ele também nunca as escutou.

Astrogildo foi ao jogo, o seu time perdeu. Houve uma briga, ele se envolveu, feriu e foi ferido. Deixou o povoado, foragido, anti-herói. E o povo esqueceu os anos de generosidade.

Alguns meses se passaram e um dia ele retornou. Não me trouxe um presente, como das outras vezes, mas me contou uma história. A história de um homem que perdeu sua família, mas encontrara outra. Que era sábio, mas não soubera escutar, que embora tivesse ganhado muito dinheiro, só tinha um bem, uma casa. Compreendi então que falava de si mesmo. Depois, retirou um papel de uma maleta de couro e entregou-me, dizendo:

– Esse é o meu presente para você. Era a escritura da casa.

E novamente foi embora.

Quando retornou ao povoado, eu estava com oito anos, havia crescido bastante, a maior mudança, contudo, não foi em minha altura, ou em meus cabelos que aos poucos perdiam os reflexos dourados, para ganharem um tom de castanho, a maior mudança, foi no motivo da sua volta. Ele voltara para o enterro do seu melhor amigo, o meu pai, que lutara contra um câncer nos anos em que estivera ausente, e perdera.

Foi Astrogildo quem nos abraçou a todos e chorou conosco. Meu pai era seu porto seguro, sua direção, seu irmão.

O desafio das partidas de sinuca havia terminado. Fim de um jogo sem vencedores.

Com a morte do meu pai, nossa vida mudou. Morávamos numa fazenda, com um grande rio e uma lagoa, onde as garças-brancas nos visitavam em novembro, tínhamos uma casa com varanda, de onde olhávamos os pastos e os bichos, tínhamos uma família e amigos. Perdemos tudo, primeiro a fazenda, depois os outros bens e com eles os amigos.

Quiseram nos dividir, minha mãe não deixou, disse que tinha força e coragem para trabalhar e criar os filhos.

Não tínhamos mais nada, só uns aos outros e a casa que Astrogildo me dera.

Mas meu pai havia permitido que um amigo vereador usasse a garagem da casa, enquanto morávamos na fazenda. Após a sua morte, o amigo quis nos tomar a casa, alegando que meu pai lhe dera. Ele tinha influência política, mas minha mãe tinha algo mais forte, coragem e conhecimento de um detalhe que ele não sabia. Que a casa não era do meu pai, era minha. Mas ainda assim, o vereador insistiu que a casa era dele. O caso foi parar num Tribunal e, uma vez mais, ganhei a casa.

Foi nela que cresci, que minha mãe montou uma pequena mercearia onde antes fora a garagem e trabalhou para nos criar. 

Aos 14 anos comecei a lecionar para uma turminha de pré-escolar. Com esse trabalho pude ajudar minha mãe com as despesas de casa e soube o que gostaria de ser para a vida toda – professora. Descobri no ensino além de um meio de passar e adquirir conhecimentos, um meio de levar esperança de um futuro melhor a meus alunos, minha mãe e meus irmãos.

Quando fiz 16 anos, Astrogildo retornou ao povoado, havia se casado com Miriam, uma morena bonita e muito simpática.

Foi nessa época que soube por que ele me dera a casa.

– Deniz, nem todas as histórias que vivi, foram bonitas como as contei a você, já fiz muitas coisas das quais não me orgulho. Mas sempre que voltava, encontrava em sua casa uma família. Vocês me salvaram de muitas maneiras, principalmente de mim mesmo. Dei a casa a você, para que não importa aonde vá, o que viva, ter um lugar que é seu, para onde sempre poderá voltar.

Um dia, chegou a minha vez de deixar o povoado, de conhecer terras distantes e viver outras histórias.

Tornei-me professora voluntária do Programa Alfabetização Solidária.

Quando voltei ao povoado, reencontrei Astrogildo. Seus cabelos mudaram, já não eram negros, nem sua pele firme, os fios tingiram-se de branco e na pele havia marcas do tempo. A mulher o abandonara, ele não tinha para quem voltar, nem para onde ir, e nos procurou.

Chamei Astrogildo e, segurando suas mãos enrugadas entre as minhas, coloquei sobre elas as chaves da casa, dizendo-lhe: – É sua novamente. Você terá sempre para onde voltar e terá sempre por quem voltar. Somos sua família.

Ele ficou alguns anos, e passou a ser eu quem voltava e lhe contava histórias das terras por onde tinha andado, mas apenas seu corpo envelhecera, sua alma continuara andarilha e, mais uma vez, deixou o povoado.

Foi a última vez que o vi.

Ambos nos tornamos andarilhos.

Em São Paulo, entrei para a Faculdade, contudo, não tinha dinheiro para pagá-la. E, pela primeira vez, pensei em vender minha casa, mas consegui uma bolsa de estudos para o curso de Letras na PUC-SP e não precisei vendê-la.

Com os anos, foram muitas as dificuldades pelas quais passei, mas não voltei a pensar em vender minha casa, porque ela é mais preciosa que o dinheiro que eu poderia ganhar com sua venda. É o meu lugar no mundo, para onde sempre poderei voltar.

Dedico esta história a meu amigo Astrogildo, que está por aí, mundo afora, colhendo histórias para contar-me quando voltar.

"Ele era um andarilho.
Ao passar pela Aldeia ele sempre me pareceu
a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida".

Manoel de Barros



Povoado de São João do Sul - Bahia
                                                      

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Vida e Poesia

Vivi com poesia toda a minha vida, sempre olhando as coisas, as pessoas sob um prisma diferente e, nesse meu modo de ver o mundo, um livro era capaz de oferecer escolhas a quem o lesse, que poderia ser o que quisesse no virar de cada página, a educação não seria privilégio de alguns, mas um direito de todos, quer morassem na cidade, ou numa fazenda no interior da Bahia, numa casa de palafita suspensa sobre um rio no Amazonas, ou num lugar destruído pela guerra, como o Timor Leste.

Um dia, numa aula para minha turma de jovens e adultos do Programa Alfabetização Solidária, uma aluna me fez uma pergunta inusitada:

– Professora, eu posso te dar um abraço?

– Sim, é claro que pode, respondi. Mas o que fiz para merecer um gesto tão carinhoso? Nem é meu aniversário, brinquei.

– Ela me abraçou forte e em lugar de responder, contou para mim e para a classe um fato ocorrido naquele dia.

– Hoje fui ao banco, como o fiz durante vários anos da minha vida, para receber o salário pelo trabalho de merendeira da escola, e quando o moço pediu para eu sujar o dedo de tinta e assinar o contracheque, eu pedi uma caneta. Ele me olhou assustado, assim como as pessoas que estavam comigo na fila. Eu também estava assustada, foi a primeira vez que assinei meu nome completo professora, que me senti gente igual a todo mundo.

– O moço observava a caneta em minha mão como se fosse um objeto desconhecido, enquanto via formar no papel, a cada nova letra escrita, o meu nome. Para ele, a caneta não era um objeto desconhecido, mas para mim, até pouco tempo, de fato era. Até pouco tempo, até mesmo o meu nome me era desconhecido. Só naquele momento me dei conta de que sabia ler, lia devagar, mas lia, de verdade.

Minha aluna se chamava Eldi, tinha 50 anos, fazia parte da escola há muito tempo, mas era a primeira vez que fazia parte da escola como estudante.

Foi um dos abraços mais sinceros que já recebi.

Eldi morreu há alguns anos em Salvador. Segundo seus filhos, aprender a ler, foi uma das maiores alegrias de sua vida.

Sem poesia, histórias como essa jamais seriam possíveis.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Chuvas de Novembro

"Eram da garça-branca-grande, 
a exagerada cândida, noiva. 
Apresentavam-se quando nem se pensava nelas, 
não esperadas. 
Por súbito: somente é assim que as garças se suscitam. 
Depois, então, cada vez, a gente gostava delas".

Guimarães Rosa 

Novembro era o mês da cheia no extremo sul da Bahia.

Nesse período, os pastos renovavam-se e uma paisagem verde e florida era vista por toda a extensão de terras. Os rios enchiam-se com novas águas e alargavam-se, tomando forma de mar, levando em correntezas de águas escuras e turbulentas tocos de árvores, folhas secas e tudo o mais que se interpunha em seu caminho.

Apareciam somente nesta época do ano, as piabas bobós, por isso, víamos em diversos pontos do rio, redes de tresmalhos armadas para aprisioná-las por entre as cerdas de náilon.

Quando retiradas da água e expostas à luz do dia, suas escamas prateadas provocavam um bonito espetáculo aos olhos dos pescadores.

A diversidade e quantidade de peixes nos rios, córregos e lagoas, atraíam uma ilustre visitante, uma figura quase mítica na região, a garça-branca que, em sua plumagem alva, paradoxalmente, coloria o pasto verdejante.

Num passado distante, fora essa ave quem inspirara os primeiros habitantes a darem o nome de Guaratinga à região, nome que em tupi-guarani, significava garça-branca.

A lagoa de vegetação abundante que ficava a alguns metros de casa, estava povoada por um grande número delas. Da varanda, ficávamos minutos sem fim observando o mágico bater de suas asas, a graça e astúcia com que sorrateiramente desciam sobre a água e, num rápido movimento, aprisionavam um peixe por entre o bico, voavam até a margem e o devoram em instantes.

Meu pai dizia que um dia chamaria um cinegrafista para aprisionar em imagem aquele revoar, desse modo, poderíamos vê-las e admirá-las não apenas em novembro, mas durante o ano inteiro.

Também chegavam lontras, capivaras e jacarés. As lontras emergiam num ponto do rio para submergirem logo adiante, como a brincar conosco de pique-esconde. Já as capivaras, ariscas e desconfiadas, ao menor sinal nosso, embrenhavam-se no mato alto, deixando para trás um odor forte e característico. Os jacarés, por sua vez, faziam breves aparições e voltavam a se camuflar sob a lama da lagoa.

Novembro era o mês em que a natureza expressava sua força e fazia tudo reviver. Era o mês da vida, para a terra, para as plantas, para os bichos e para os homens.

A fazenda Flor da Barra dividia-se em duas partes: uma parte era de montes e colinas, a outra, de pastos e plantações que, nesta época, ficava sob as águas. Por isso, era preciso resgatar os animais que não conseguiram cruzar o rio e chegar à parte alta antes da enchente.

Entre os animais que ficaram ilhados, estavam uma égua e seu potrinho recém-nascido, que eram o tesouro da fazenda, tanto por serem de raça, quanto por serem animais jovens, fortes e a promessa de uma longa prole.

Meu irmão Ronaldo e meu primo Aurélio, ambos exímios nadadores, ofereceram-se para nadar até o outro lado do rio e trazê-los a um ponto seguro da fazenda.

Como não parecia haver nenhuma outra possibilidade para resgatá-los, senão atravessando o rio, os vaqueiros concordaram com o oferecimento.

Ronaldo e Aurélio saltaram no rio, procurando vencer a braçadas a violenta correnteza, num esforço supremo para não serem levados rio abaixo.

Foi com um misto de animação e alívio que da margem do rio, vimos os dois chegarem ao outro lado.
A égua e o potrinho pastavam próximos da margem, desse modo, foi fácil fazê-los mergulharem no rio.

Mesmo de onde estávamos era possível ouvir o barulho quando ambos entraram na água.

A partir desse momento, uma cena inimaginável desenrolou-se frente aos espectadores daquela empreitada, que minutos antes parecera simples e, que de repente, se afigurava aterradora.

A égua estava nadando com desenvoltura e já havia chegado ao meio do rio, quando olhando ao seu redor notou que o filhote não estava ao seu lado. A correnteza o havia afastado e estava mais abaixo, num ponto em que as águas formavam um redemoinho. Ele se debatia, tentando sair da turbulência das águas, que o tragava impiedosamente.

A égua se voltou para o filhote e desceu em direção ao redemoinho. Sua intenção era clara para todos – tentaria salvá-lo. Conseguiu chegar até ele e segurá-lo pela orelha, procurando com esse gesto, puxá-lo para cima, para longe do redemoinho. Debateu-se, nadou, lutou, mas o grande esforço despendido nesta tarefa a extenuaram.

Aos poucos, foi parando de lutar, até que a orelha do potrinho soltou-se de sua boca. Mãe e filho afundaram nas águas profundas, escuras e fatais do Rio do Peixe. De repente, emergiram e mais uma vez pudemos vê-los, mas pareciam ter voltado apenas para um último suspiro de vida, voltaram a afundar e não mais emergiram, afogaram-se.

Um sentimento de tristeza e impotência tomou conta de todos, ninguém conseguia crer em tamanha ironia, uma vez que, muitos animais já velhos, atravessaram o rio sem problemas, enquanto que aqueles, jovens e saudáveis, sucumbiram à força das águas.

A natureza, como a querer nos comprovar que a cena fora real, os trouxe de volta num ponto mais abaixo do rio, deformados pela quantidade de água ingerida, depois flutuando lado a lado, mãe e filho foram levados pela correnteza, numa viagem sem volta pela imensidão do rio.

Rio adentro, rio afora, rio abaixo, rio.

Passaram-se os meses e, num dia ensolarado de maio, nosso pai morreu.

Um folheiro fazia sombra à sepultura no alto do morro e, logo abaixo, estava a lagoa, na qual dali a seis meses, as garças-brancas retornariam, seria novembro, a vida ressurgiria, para a terra, para as plantas, para os bichos e para os homens.




Ilustração de Rodrigo Chica para o conto Chuvas de Novembro

Os Gatos

Sentada num banco próximo a um canteiro de margaridas, eu esperava.

Enquanto os minutos passavam, observei as pessoas que entravam e saíam apressadas e imaginei que não sorriam por falta de tempo ou porque não viam os gatos. Dezenas deles, brancos, pretos, malhados, de olhos claros, castanhos, negros, gatos pequenos e grandes, dóceis e ariscos.

Um deles encostou-se em meus pés pedindo carinho e logo a seguir ronronou de satisfação com o afago recebido. Pensei em como eram belos em seu jeito despreocupado e preguiçoso de andar de um canto a outro do enorme jardim.

Era meu aniversário. Sempre imaginamos algo especial para fazer nesse dia, qual presente ganharemos. Nosso aniversário também representa o que vivemos e o que ainda vamos viver. E sentada naquele banco olhando os gatos, pensei como seria viver sem essa perspectiva de continuidade e compreendi que não eram os gatos que as pessoas não viam, era o futuro.

Meu primo tinha displasia de medula óssea e estava internado na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo em tratamento.

Temos tanta pressa. Pressa em crescer, em entrar na faculdade, em terminá-la e conseguir um bom trabalho, em nos apaixonar, casar, ter filhos, corremos até numa visita a um parente no hospital.

Por que corremos tanto? Para sobrar mais tempo? Mais tempo para quê?

A enfermeira fez sinal para que eu entrasse.

Meu primo me olhou e parecia pedir que lhe desse boas notícias.

Enquanto ele estava internado, a violência aumentou na cidade, as chuvas deixaram algumas pessoas desabrigadas, ainda era alto o índice de desemprego, e alguns times caíram para a segunda divisão, eu poderia lhe falar sobre tudo isso, mas escolhi falar-lhe sobre a quantidade de gatos lá fora, de vida, à sua espera. Não nas coisas que costumamos achar importantes quando temos todo o tempo do mundo, como um emprego melhor, um salário maior, mas nos detalhes, que não levam mais que alguns segundos para serem vistos, percebidos, vividos, como a beleza de um canteiro de margaridas que teima em florescer mesmo dentro de um hospital ou no pedido silencioso de carinho feito por de um gato.

Meu primo sorria quando deixei o hospital. Foi o meu melhor presente.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Olhos Tristes

Chegou mais cedo que de costume, encostou-se ao balcão e pediu uma dose de atenção. Servi um sorriso cordial. Não o satisfez, queria algo mais forte, uma bebida que descesse ardente pela garganta ressequida e tirasse da língua o gosto amargo da vida.

Tinha olhos tristes, que expressavam uma angústia pouco comum em alguém ainda tão jovem. 

Após sorver de um único gole o conhaque, ficou em absoluto silêncio. 

Esperei que falasse sobre o tempo, a falta de trabalho, o número crescente de assassinatos, sobre qualquer coisa que indicasse interesse pelo mundo e as pessoas à sua volta. 

O silêncio foi quebrado por uma pergunta inesperada: 

– Você já leu Capitães da Areia? 

Antes que eu pudesse assimilar a pergunta e formular uma resposta, seguiu falando sobre o livro e a história do bando de meninos liderados por Pedro Bala, meninos quase crianças, quase adultos, quase éticos, quase bandidos, quase. 

Disse que o seu personagem preferido era o menino conhecido na trama como Professor, por que lia, desenhava e tinha honra. Compreendi, então, que falava mais para si mesmo, do que para mim, comparava sua vida à de personagens atormentados, complexos, misturava em seu relato, ficção e realidade. 

Pediu para usar o banheiro. Indiquei a direção. Voltou minutos depois passando, repetidamente, as mãos sobre o nariz, mas apesar do esforço para limpá-lo, ainda eram visíveis os restos de pó. 

Aproximou-se de mim, os olhos agora eram vívidos e ainda mais atormentados, contavam sua história.

Morava do outro lado da rua, num quarto de aluguel em companhia de um violão sem cordas, um colchão desgastado pelo tempo e alguns exemplares de Jorge Amado, quase que totalmente devorados pelas traças. 

Na parede, o mofo dividia espaço com um espelho quebrado, no qual ao se olhar, via um rosto fragmentado, incompleto, mais velho do que deveria ser. 

Ao canto, uma mesa de pernas vacilantes, escorada por tijolos, servia de suporte às garrafas vazias de cerveja e compunha o restante da escassa mobília. 

Podia criar paisagens numa tela ou num pedaço rasgado de papel, esculpir num tronco disforme, figuras surpreendentes, compor e tocar belas canções, falar sobre os mais diversos assuntos, conquistar muitas mulheres, brincar com crianças, conversar com idosos. 

Poderia ser um artista, professor. Poderia ser muitas coisas, mas escolhera não ser nada, nada que esperavam que fosse. 

Era um capitão da areia. 

A droga levou seu dinheiro, seu amor próprio, sua família, levou tudo o que era, ou pensou em ser. 

A única coisa que lhe restou foram os olhos tristes.

A Limusine Branca

Por entre as grades do portão de ferro, ela olhava a rua silenciosa, com seus casarões antigos e árvores estáticas.

O tempo era feito de esperas.

Ao longe, uma Limusine branca coloria o espaço cinza de um dia sem sol.

Durante segundos infinitos, se permitiu contemplar a imagem e tecer ideias sobre quem a Limusine estaria levando. Gostava de pensar que era um artista ou uma noiva, a caminho de destinos surpreendentes.

Olhou uma vez mais, a claridade se fora, viu o rodo e o pano de chão, a vassoura e o pó, viu a si mesma, entre a realidade e o sonho.

Trabalhava numa casa no Butantã. Do salário que recebia, tirava o suficiente para as despesas de casa e o sustento dos filhos pequenos.

A pretexto de uma proposta irrecusável de trabalho em outro Estado, o marido foi embora e nunca mais voltou. 

Mas ela não reclamava da vida, tinha saúde, fé e muita coragem, tinha, sobretudo, por quem lutar, por quem ser forte.

Por um momento um sorriso iluminou o seu rosto ao lembrar-se do menino de olhos grandes e curiosos e da menina de cabelos cacheados. Todos os dias, lhes contava histórias sobre a Limusine branca, misteriosa, que surgia quando nem se pensava nela, e pelo espaço de tempo em que cruzava a rua, tornava o seu dia mais bonito, depois desaparecia entre casas, carros e multidão.

À noite, ao contar mais uma aventura aos filhos, eles quiseram saber se um dia também poderiam vê-la passar. Ela prometeu que sim, que os levaria ao lugar de onde elas surgiam. Um lugar muito grande e bonito.

As crianças já dormiam quando pensou em lhes dizer que era só uma história.

No outro dia, saiu mais cedo, decidida a desvendar o mistério. Caminhou até o final da rua em que trabalhava, viu apenas os casarões antigos de sempre e, nenhum deles parecia abrigar, atrás dos muros altos de pedras e imponentes portões, as Limusines. Perguntou aos seguranças e, a quem mais viu passar pela rua, se sabiam algo a respeito, após várias respostas negativas, finalmente descobrira de onde vinham. Porém, já estava tarde, precisava trabalhar.

Passou o dia numa doce expectativa de quem conheceria algo precioso. Terminou todo o serviço e foi embora, não para casa, ainda, mas para o destino a tanto esperado.

Após andar por alguns minutos, chegou a uma imensa construção, cercada por um jardim de flores coloridas e um tapete verde de gramas. Homens vestidos sobriamente protegiam a porta. Aproximou-se e perguntou se poderia entrar. Relatou o motivo de estar ali. Os homens a olharam, viram a roupa simples, os sapatos gastos e julgaram que não tinha a aparência de quem poderia alugar uma Limusine. E não a deixaram entrar.

Enquanto tentava argumentar, um carro atravessou o portão. Com surpresa, observou a porta traseira se abrir, um senhor de barbas brancas descer e vir a seu encontro. Quis saber o que se passava. Os homens asseguraram que não era nada, apenas uma mulher querendo entrar onde não devia. 

O senhor voltou a perguntar, deixando claro que gostaria de saber a sua versão do que acontecera. Ela contou-lhe do seu sonho e dos filhos de conhecer uma Limusine. Ele mostrou-se feliz com sua resposta. E começou a falar num tom que também poderia ser ouvido pelos homens, sobre um jovem motorista, com pouco dinheiro no bolso e um sonho grandioso, o de ter seu próprio carro. Não um carro comum, mas um carro que levasse as pessoas a destinos surpreendentes, com segurança, conforto e requinte. Não foi difícil perceber que falava de si mesmo, de um tempo em que ainda não era o dono de uma grande frota de Limusines.

Pediu-lhe que viesse no dia seguinte e trouxesse as crianças, ele mesmo lhes mostraria a Limusine branca e seria o motorista que as levaria para um passeio pelo Butantã. Ela o agradeceu e foi embora, ansiosa por contar aos filhos, que as Limusines vinham de um lugar que era feito de trabalho, dedicação e sonhos.